Nos termos do artigo 53, §1º, da CF/88, “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Trata-se de foro por prerrogativa de função, exercido pelo STF e que se estende da diplomação (e não da posse) até o fim do mandato.
Em razão da amplitude que pode ser extraída do texto literal da Constituição, sempre se considerou que todo e qualquer processo criminal a que respondesse o parlamentar deveria ser levado ao Supremo Tribunal Federal a partir da diplomação, ou seja, passavam à jurisdição do tribunal eventuais processos por crimes cometidos antes da diplomação e nela se iniciava qualquer processo por crime cometido após a diplomação e até o fim do mandato parlamentar.
O tribunal, no entanto, por meio de questão de ordem na Ação Penal 937 (j. 03/05/2018), decidiu que: 1) a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele; 2) a jurisdição do STF se perpetua caso tenha havido o encerramento da instrução processual – leia-se: intimação das partes para apresentação das derradeiras alegações – antes da extinção do mandato.
A decisão tratou do tema em termos genéricos, mas diversas situações específicas têm sido apreciadas aos poucos pelos tribunais superiores, de acordo com as circunstâncias dos casos concretos.
Uma das situações, recentemente abordada pela Corte Suprema (Pet. 9189, j. 12/05/2021), envolve o caso de deputados federais eleitos senadores e vice-versa. Ambos os cargos têm prerrogativa de foro no STF, mas, a rigor, a decisão tomada na AP 937 deveria impedir a permanência de inquéritos policiais e de ações penais naquela corte, pois, se o foro por prerrogativa existe no caso de crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele, a extinção do mandato faria desaparecer a prerrogativa. Ainda que, em virtude da eleição, o agente permaneça com prerrogativa perante o mesmo tribunal, trata-se de cargos distintos e de crimes cometidos em outras circunstâncias, que não justificariam a manutenção do foro.
Mas, por maioria, o STF decidiu que, no caso de mandatos cruzados na esfera federal, o foro por prerrogativa permanece sobre crimes cometidos no exercício do cargo anterior.
Segundo a relatora – min. Rosa Weber –, o mandato eletivo tem dois atributos: um material e outro temporal. O material diz respeito às atribuições, prerrogativas e obrigações do cargo. O temporal corresponde ao período de tempo legalmente determinado. A delimitação no tempo, por ser uma característica dos regimes democráticos, deve ser concretizada da maneira mais ampla possível. Por isso, mesmo a interpretação de que o foro por prerrogativa permanece quando o parlamentar é reeleito para o mesmo cargo é uma concessão que, em certa medida, fragiliza o elemento temporal. No entanto, pode ser tolerado porque, tratando-se de cargo idêntico, o aspecto material, isoladamente, pode sustentar a manutenção da prerrogativa.
Mas, para a ministra, não é defensável a extensão da prerrogativa de foro no caso de mudança de mandato, pois isso viola o conceito constitucionalmente delimitado de mandato eletivo e, nesse caso, já não há mais os atributos materiais do cargo ocupado anteriormente:
“Afinal, abrangendo, o conceito, elementos de cariz substancial e temporal, qualquer compreensão que se pretenda fiel ao arquétipo constitucional deve buscar, ao menos, remissão a algum dos dois elementos conceituais em questão.
Tal remissão é inviável quando em escrutínio situações fáticas como a que se apresenta nestes autos, em que Deputado Federal elege-se para cargo de Senador da República, pois nenhum dos critérios de fixação de competência perdura para justificar a perpetuação da jurisdição desta Suprema Corte.
Com efeito, o elemento temporal constitucionalmente delimitado esvaiu-se com o encerramento da legislatura; de igual modo, ausente o elemento material ou substancial , porquanto diferente o plexo de atribuições dos respectivos cargos eletivos.
[…]
Forte nestas razões, Senhor Presidente, eminentes pares, voto pelo não provimento do agravo regimental, mantendo incólume a decisão monocrática pela qual remeti a parcela da investigação referente ao Senador da República Márcio Miguel Bittar, no âmbito do Inquérito 4846, à primeira instância da Justiça Federal no Distrito Federal.
Proponho a seguinte tese de julgamento: 1. O foro por prerrogativa de função (CPP, arts. 84 a 87) encerra-se quando o agente público dele detentor passa a ocupar cargo público ou exercer mandato eletivo distinto daquele que originalmente atraiu a regra especial de competência, ainda que a mudança de assento funcional ocorra sem solução de continuidade. 2. Na linha do precedente firmado no julgamento da QO na AP 937, aludida regra de competência também não perdura nas hipóteses de ‘mandatos parlamentares cruzados’”.
A maioria, no entanto, acompanhou o voto divergente do min. Edson Fachin, para quem o foro por prerrogativa deve permanecer se, ausente solução de continuidade, o deputado federal é eleito para cargo no Senado ou o senador é eleito para cargo na Câmara dos Deputados. A prerrogativa deixa de existir se houver interrupção entre os mandatos. Referindo-se ao julgamento proferido na AP 937, afirmou o ministro:
“[…] De acordo com as razões de decidir desse julgado paradigma, a exigência da concomitância dos sobreditos requisitos – prática do crime no tempo do exercício do cargo e em razão da função ocupada – para a configuração da competência originária do Supremo Tribunal Federal elide a desfuncionalidade e a ineficiência do sistema de justiça criminal provocado pelo amplo alcance da prerrogativa de foro se o único aspecto considerado fosse a diplomação da autoridade para quaisquer dos cargos nomeados pela Constituição (art. 102, I), enfatizando, ademais, que a prerrogativa de função não significa assegurar privilégio pessoal, mas condiz unicamente com a proteção funcional.
Contudo, a despeito desse pronunciamento restritivo e passível de ser aplicado de imediato, foi assentada a possibilidade de perpetuação da jurisdição, nos casos em que a ocupação do cargo cessar, independente da motivação, após o término da instrução processual, ou seja, com a publicação do despacho de intimação das partes às alegações finais, marco temporal a partir do qual a competência não mais sofrerá alteração.
Diante dessas balizas, sob o meu olhar, a competência o Supremo Tribunal Federal alcança os Congressistas Federais no exercício de mandato em casa parlamentar diversa daquela em que fora consumada a hipotética conduta delitiva, pois hipótese que encontra subsunção no art. 102, I, “b”, da Constituição Federal, desde que não haja solução de continuidade.
Havendo interrupção ou término do mandato parlamentar, sem que o investigado ou acusado tenha sido novamente eleito para os cargos de Deputado Federal ou Senador da República, exclusivamente, o declínio da competência é medida impositiva , nos termos do entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na aludida questão de ordem […]”.
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