Informativo: 1023 do STF – Direito Penal e Processo Penal
Resumo: A exigência de representação da vítima no crime de estelionato retroage aos processos em andamento, até o trânsito em julgado.
Comentários:
A Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime) inseriu no art. 171 o § 5º, que modifica a natureza da ação penal, antes pública incondicionada (com as exceções do art. 182 do CP). Atualmente, a ação penal é pública condicionada a representação, exceto se a vítima for:
a) a Administração Pública, direta ou indireta;
b) criança ou adolescente: segundo a definição do art. 2º da Lei 8.069/90, criança é a pessoa de até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade;
c) pessoa com deficiência mental;
d) maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz: a regra da ação penal, diferentemente do que ocorre na majorante do § 4º do art. 171, não utiliza o conceito legal de idoso, que, nos termos do art. 1º da Lei 10.741/03, é a pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos. Somente se a vítima superar os setenta anos idade é que a ação penal se tornará pública incondicionada. Segundo o art. 4º do Código Civil, além dos menores entre dezesseis e dezoito anos (já inclusos no inciso II do § 5º), são incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: a) os ébrios habituais e os viciados em tóxico; b) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; d) os pródigos.
Tendo em vista que a necessidade de representação traz consigo institutos extintivos da punibilidade, a regra do § 5º deve ser analisada sob a perspectiva da aplicação da lei penal no tempo. Aqui temos de diferenciar duas hipóteses:
a) se a denúncia ainda não foi oferecida, deve o MP aguardar a oportuna representação da vítima ou o decurso do prazo decadencial, cujo termo inicial, para os fatos pretéritos, é a vigência da nova lei.
b) se a denúncia já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não alcançado pela mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 88 da Lei 9.099/1995).
Esse tema é objeto de controvérsia. Em decisão proferida em 24 de março de 2021, a Terceira Seção do STJ decidiu que a necessidade de representação retroage apenas nos casos em que a denúncia não tenha sido oferecida:
“A controvérsia aborda a retroatividade ou não da Lei n. 13.964/19, também conhecida por Pacote Anticrime, no que toca ao seu aspecto alterador da natureza jurídica da ação penal no delito de estelionato (art. 171 do Código Penal). A ação que era pública incondicionada, como cediço, passou a exigir a representação da vítima, como condição de procedibilidade, tornando-se, assim, ação pública condicionada à representação.
A celeuma então se instalou em relação àquelas ações penais já instauradas: seria a norma retroativa? A representação da vítima seria também condição de prosseguibilidade? Ou em outros termos, a vítima, quando já instaurada a ação penal, precisa comparecer em juízo para apresentar a sua representação?
A retroatividade da norma que previu a ação penal pública condicionada, como regra, no crime de estelionato, é desaconselhada por, ao menos, duas ordens de motivos.
A primeira é de caráter processual e constitucional, pois o papel dos Tribunais Superiores, na estrutura do Judiciário brasileiro é o de estabelecer diretrizes aos demais Órgãos jurisdicionais. Nesse sentido, verifica-se que o STF, por ambas as turmas, já se manifestou no sentido da irretroatividade da lei que instituiu a condição de procedibilidade no delito previsto no art. 171 do CP.
Em relação ao aspecto material, tem-se que a irretroatividade do art. 171, §5º, do CP, decorre da própria mens legis, pois, mesmo podendo, o legislador previu apenas a condição de procedibilidade, nada dispondo sobre a condição de prosseguibilidade. Ademais, necessário ainda registrar a importância de se resguardar a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito (art. 25 do CPP), quando já oferecida a denúncia.
Oportuno assinalar, ainda, que prevalece, tanto neste STJ quanto no STF, o entendimento no sentido de que “a representação, nos crimes de ação penal pública condicionada, não exige maiores formalidades, sendo suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tem interesse na persecução penal. Dessa forma, não há necessidade da existência nos autos de peça processual com esse título, sendo suficiente que a vítima ou seu representante legal leve o fato ao conhecimento das autoridades”. (AgRg no HC 435.751/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 04/09/2018)” (HC 610.201/SP, j. 24/03/2021).
Essa é a orientação que vem sendo seguida pela 2ª Turma do STF:
“Não retroage a norma prevista no § 5º do art. 171 do Código Penal (CP) (1), incluída pela Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”), que passou a exigir a representação da vítima como condição de procedibilidade para a instauração de ação penal, nas hipóteses em que o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor do novo diploma legal.
A norma processual anteriormente vigente definia a ação penal para o delito de estelionato, em regra, como pública incondicionada. Desse modo, nos casos em que já oferecida a denúncia, tem-se a concretização de ato jurídico perfeito, o que obstaculiza a interrupção da ação penal.
Por outro lado, por tratar-se de “condição de procedibilidade da ação penal”, a aplicação da regra prevista no § 5º do art. 171 do CP, com redação dada pela Lei 13.964/2019, será obrigatória em todas as hipóteses em que ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Parquet, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do art. 2º, do Código de Processo Penal (CPP) (2). Entendimento diverso demandaria expressa previsão legal, pois se estaria transformando a “representação da vítima”, clássica condição de procedibilidade, em verdadeira “condição de prosseguibilidade da ação penal”, alterando sua tradicional natureza jurídica. A representação da vítima somente estaria dispensada nas situações expressamente previstas no §5º do art. 171 do CP, uma vez que outros bens jurídicos estariam afetados.
Trata-se, no caso, de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática de indeferimento liminar de outro writ no Superior Tribunal de Justiça. Em face da singularidade da matéria, da sua relevância, da multiplicidade de habeas corpus sobre o mesmo tema e da necessidade de sua definição, a Primeira Turma superou a Súmula 691 para conhecer da impetração. Entretanto, ante a inexistência de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia, indeferiu a ordem” (HC 187.341/SP, j. 13/10/2020).
A 1ª Turma, no entanto, decidiu que a exigência de representação deve retroagir inclusive para ações penais em andamento:
“A alteração promovida pela Lei 13.964/2019, que introduziu o § 5º ao art. 171 do Código Penal (CP), ao condicionar o exercício da pretensão punitiva do Estado à representação da pessoa ofendida, deve ser aplicada de forma retroativa a abranger tanto as ações penais não iniciadas quanto as ações penais em curso até o trânsito em julgado.
Ainda que a Lei 13.964/2019 não tenha introduzido, no CP, dispositivo semelhante ao contido no art. 91 da Lei 9.099/1995, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que, em razão do princípio constitucional da lei penal mais favorável, a modificação da natureza da ação penal de pública para pública condicionada à representação, por obstar a própria aplicação da sanção penal, deve retroagir e ter aplicação mesmo em ações penais já iniciadas.
Mesmo que o legislador ordinário tenha silenciado sobre o tema, o art. 5º, XL, da Constituição Federal (CF), é norma constitucional de eficácia plena e aplicação imediata. É dizer, não se pode condicionar a aplicação do referido dispositivo constitucional à regulação legislativa.
Além disso, consoante o art. 3º do Código de Processo Penal (CPP), a lei processual penal é norma que admite “a interpretação extensiva e aplicação analógica”, de modo que não há óbice, por exemplo, na aplicação, por analogia, do art. 91 da Lei 9.099/1995, nem da incidência do art. 485, § 3º, do Código de Processo Civil (CPC), que informa que os pressupostos de desenvolvimento válido e regular do processo, assim como a legitimidade de agir podem ser conhecidas pelo magistrado de ofício, “em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado”.
Com base nesse entendimento, a Segunda Turma, por maioria, negou provimento ao agravo regimental, mas concedeu o habeas corpus, de ofício, para trancar a ação penal, com a aplicação retroativa, até o trânsito em julgado, do disposto no art. 171, § 5º, do CP, com a alteração introduzida pela Lei 13.964/2019. Vencido, em parte, o ministro Ricardo Lewandowski, que deu provimento ao recurso para conceder a ordem e trancar a ação penal” (HC 180.421 AgR/SP, j. 22/06/2021).
Livro: Manual de Direito Penal (parte especial)
Conheça os cursos do Ministério Público da Lesen, coordenados pelo professor Rogério Sanches: