1- O SALVO-CONDUTO DA IMPUNIDADE
Preconiza o artigo 236 do Código Eleitoral:
Art. 236. Nenhuma autoridade poderá, desde 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável, ou, ainda, por desrespeito a salvo-conduto.
§ 1º Os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de flagrante delito; da mesma garantia gozarão os candidatos desde 15 (quinze) dias antes da eleição.
§ 2º Ocorrendo qualquer prisão o preso será imediatamente conduzido à presença do juiz competente que, se verificar a ilegalidade da detenção, a relaxará e promoverá a responsabilidade do coator.
Esta esdrúxula previsão remonta ao Código Eleitoral de 1932 e foi repetida na edição de 1965, naquele tempo fazia sentido, era um período de estremo autoritarismo político em que eram comuns as influências de “coronéis” e autoridades poderosas sobre o eleitorado, inclusive violência e ameaças, pessoas e famílias inteiras eram presas só porque pensavam de forma diversa do padrão imposto.
Como explica Cláudio da Silva Leiria, “o ‘coronel’ também tinha a seu serviço a polícia (cujo chefe geralmente nomeava) e os ‘cabras’, que davam ‘proteção’ contra os adversários políticos e intimidavam eleitores“.[1]
Dessa forma, “a proibição às prisões no período eleitoral – tirante as exceções legais – tem como uma de suas principais finalidades coibir abusos e evitar ‘armações’ que causem repercussão de tal monta que possam influenciar o eleitor ou colocar em dúvida, por interesse de partidos políticos, os resultados de uma eleição“.[2]
Neste sentido, o artigo 236 do Código Eleitoral teve sua importância história, mas hoje só podemos entender o alcance da convivência com esta norma jurídica visualizando-a por seu lado prático.
Tício, perigoso assaltante, acusado de vários roubos, triplo homicídio e dois estupros, estava foragido com prisão preventiva decretada, mas apareceu para votar nas eleições de 2022. Populares ligaram para a delegacia e a resposta do delegado foi uma só:
“Não há flagrante delito, não há sentença criminal condenatória por crime inafiançável e nem desrespeito a salvo-conduto, portanto, só podemos prendê-lo 48h após a eleição”.
É claro que Tício ainda se encontra foragido, assaltando, matando e estuprando, pois profissionais do Direito estritamente legalistas aplicam o art. 236 do Código Eleitoral em seu sentido literal, sem compatibilizá-lo com a Constituição Federal.
Dizia Carlos Maximiliano:
“Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.” [3]
Neste contexto, entendo que a esdrúxula imunidade formal prisional prevista no art. 236, §1º, não foi recepcionada pela nova Constituição Federal, porque o ordenamento jurídico máximo, ao permitir alguns tipos de prisões, textualmente, excepcionou algumas situações e em nenhum momento se referiu às prisões em período eleitoral.
O inciso LXI do art. 5º da CF/88 foi taxativo:
“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”
O flagrante delito ou a ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente são institutos autorizados pela Constituição Federal, portanto, uma norma infraconstitucional não pode retirar a sua eficácia.
É ilação plenamente lógica que, se a prisão estiver em consonância com a Constituição Federal, poderá ser executada, mesmo em época de eleição, não sendo juridicamente possível ser alegada a sua ilegalidade.
Seria uma grande excrescência jurídica uma prisão preventiva, leia-se: “uma ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”, não poder ser executada porque a legislação infraconstitucional não permite algo que é autorizado pela Constituição Federal.
Insta ainda acentuar que o Código Eleitoral também não foi recepcionado pela Constituição Federal quando permite a prisão em “virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável” e não exige o trânsito em julgado da sentença condenatória, algo que, em realidade, atenta contra o princípio da não culpabilidade antecipada.
Em realidade, a prisão em virtude de sentença criminal condenatória só será juridicamente viável se presentes os requisitos da prisão preventiva; é a conclusão imperativa da leitura do art. 492, I, alínea e, in verbis:
Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva;
Quanto à decisão de pronúncia, defendemos, no livro “Manual do Júri -Teoria e Prática”, Editora JH Mizuno, que:
Antes da reforma, o STJ tinha defendia que: ‘Nos processos da competência do Tribunal do Júri, a prisão do réu é efeito legal da pronúncia, não havendo falar em constrangimento, se o decisum se ajusta à letra do art. 408 do Código de Processo Penal. Recurso improvido’, hoje, no sistema processual penal vigente, não vigora mais o princípio da prisão obrigatória em decorrência da sentença de pronúncia. Entretanto, a revogação da prisão preventiva, na fase de pronúncia, não é direito subjetivo do acusado. O Código de Processo Penal preconiza que o juiz eleitoral decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código.
Denota-se que a prisão no dia da eleição também pode ser originária, não de uma sentença condenatória e sim da própria decisão de pronúncia, presentes os requisitos da prisão preventiva.
Portanto, a solução será fazer uma interpretação conforme a Constituição Federal é dizer, o juiz eleitoral ou o Tribunal deve, na análise do caso concreto, declarar qual das possíveis interpretações revela-se compatível com a Lei Fundamental.
2- OS TIPOS DE PRISÕES POSSÍVES EM PERÍODO ELEITORAL
Assim, em uma interpretação, conforme a Constituição Federal, podemos dizer que serão possíveis sete tipos de prisões no período eleitoral:
a) Prisão em flagrante (agora pré-cautelar);
b) Prisão preventiva;
c) Prisão oriunda de sentença criminal condenatória transitada em julgado. Vale lembrar que, no tocante à sentença condenatória definitiva, por acarretar a suspensão dos direitos políticos, o agente não poderá ser candidato tampouco membro das mesas receptoras.
d) Prisão por recaptura de réus;
e) Prisão originária da decisão de pronúncia, presentes os requisitos da prisão preventiva.
f) Por fim, a prisão por desrespeito a salvo-conduto.
h) Prisão temporária por crimes que não seja eleitoral.
Insta acentuar que, no Direito Eleitoral, é inadmissível a prisão temporária, porque a Lei nº 7.960/89 não elenca em seus dispositivos nenhum crime eleitoral.
3- A PROBLEMÁTICA DO FLAGRANTE AUTOFÁGICO
Imagine-se a hipótese de alguém ser preso em flagrante delito por ter cometido um duplo homicídio poucas horas antes da vigência do período eleitoral e que somente seja levado à presença da autoridade judicial quando já efetiva a proibição de prisão, sabemos que o flagrante para que a prisão subsista precisa ser convertido em preventiva. E aí? A prisão preventiva não pode ser decretada em virtude no período eleitoral?
Tal situação foi percebida pelo Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto (TRF-4 – HC: 50434933120164040000 5043493-31.2016.4.04.0000, Relator: JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, Data de Julgamento: 14/12/2016, OITAVA TURMA).
A questão não é trivial, e tem implicação no novo modelo de regulação das prisões processuais, derivado da Lei 12.403/11, e que, como sabido, alterou o Código de Processo Penal a este respeito.
É que, como sabido, na atualidade já não se fala que a “prisão em flagrante prende por si só“, de modo que, ao ser efetivada, poderá a prisão em flagrante ser convertida em preventiva, presentes os requisitos do art. 310, II, do Código de Processo Penal.
A vingar o alvitre trazido pelos impetrantes, a hipótese de alguém preso em flagrante na véspera do início do período eleitoral, acaso somente em sua vigência viessem os autos respectivos ao juiz, resolver-se-ia, tout court, pela soltura, porquanto não se lhe poderia impor a prisão preventiva, inibida pelo artigo de lei invocado. E ainda, se não mais se pode manter-se alguém preso somente por força do flagrante, sendo de rigor sua conversão em prisão preventiva, a inviabilidade de cumprirem-se tais prisões preventivas no período eleitoral funcionaria como uma extravagante autorização para que neste interregno se pudessem praticar crimes, com a exoneração de qualquer tipo de segregação.
Ocorre que, reitere-se, numa tal situação, tanto quanto sucede na espécie, não obstante o título da segregação seja outro, este recolhe pessoa já presa ou detida, em cujo benefício já não se é de cogitar do art. 236 do Código Eleitoral.
Apenas para exemplificar, imagine-se a hipótese de alguém ser detido em flagrante delito poucas horas antes da vigência do período e que somente seja levado à presença da autoridade judicial quando já efetiva a proibição de prisão. Neste caso, a prevalecer a tese defensiva, haveria despropositado obstáculo à conversão do flagrante em prisão preventiva.
Tal entendimento, todavia, não pode ganhar eco, em particular porque já existente efetiva restrição à liberdade previamente ao interregno estabelecido pelo Código Eleitoral, não impede que o magistrado homologue o flagrante, ou mesmo que converta prisões temporárias em preventivas.
4- A MATÉRIA NA DOUTRINA
Poucos doutrinadores enfrentam o tema.
José Joel Cândido leciona que:
“Hoje, com a vigência do art. 5º, LXI, da Constituição Federal, o art. 236 e §1º, do Código Eleitoral, está revogado. Mesmo fora daqueles períodos ninguém pode ser preso, a não ser nas exceções mencionadas na lei. E pelas exceções constitucionais a prisão será legal, podendo ser efetuada mesmo dentro dos períodos aludidos no Código Eleitoral. Em resumo: se a prisão não for nos moldes da Constituição Federal, nunca poderá ser efetuada; dentro dos limites da Constituição Federal pode sempre ser executada, mesmo em época de eleição. E se a ação do agente for manifestamente com escopo eleitoral, eleitoral será o crime; caso contrário, o crime será comum”
Marcus Vinicius Furtado Coêlho destaca:
“Por ser o Código Eleitoral uma norma infra-constitucional, para a devida interpretação deve-se sempre orientar-se pela Constituição Federal, a qual, em seu art. 5º, LXI, estabeleceu que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei””.
5- A MATÉRIA NA JURISPRUDÊNCIA
Precedente no STF:
Para o Supremo Tribunal Federal, o entendimento é no sentido de que, a aplicação da Lei Penal, não pode ser prejudicada, sendo imprescindível a manutenção da ordem pública e do devido processo legal, nos cumprimentos dos mandados de prisão, evidenciados os casos que não possuem qualquer relação com as atividades eleitorais:
Confira: (STF – HC: 163.467 RJ – RIO DE JANEIRO, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 13/11/2018, Data de Publicação: DJe-244 19/11/2018).
Precedente no STJ:
A vedação contida no art. 236 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) é instrumento que serve à preservação da liberdade do eleitor e diz respeito ao cumprimento de ordens de prisão afora das hipóteses admitidas na disciplina legal. A restrição contida no art. 236 do Código Eleitoral não tem aplicação nos casos em que o agente, por alguma razão, já se encontra com a liberdade mitigada por conta de ordem judicial válida previamente ao período de restrição. Hipótese em que é valida a conversão da prisão do flagrante ou da prisão temporária em preventiva. ((STJ – HC: 374357 PR 2016/0267266-0, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Publicação: DJ 20/04/2017).
Precedente no TRF 4:
(b) a vedação contida no art. 2366 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65)é instrumento que serve à preservação da liberdade do eleitor e do próprio sistema democrático, diz respeito ao cumprimento de ordens de prisão afora das hipóteses admitidas na disciplina legal; (c) a restrição contida no art. 236 do Código Eleitoral não tem aplicação nos casos em que o agente, por alguma razão, já se encontra com a liberdade mitigada por conta de ordem judicial válida previamente ao período de restrição. (TRF-4 – HC: 50434933120164040000 5043493-31.2016.4.04.0000, Relator: JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, Data de Julgamento: 14/12/2016, OITAVA TURMA)
Precedente no TRF 3:
“Mandado de prisão preventiva expedido antes do período eleitoral de réu foragido que utilizou o período eleitoral para transitar por aeroportos. A garantia do eleitor não pode ser utilizada como escudo para quem se furta ao cumprimento de ordem judicial de prisão expedido há muito tempo antes do período de blindagem contra prisões eleitorais. (Processo 5025073-34.2018.4.03.0000 – 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região negou Habeas Corpus)”.
Não pode o Código Eleitoral, norma infraconstitucional, estabelecer restrições às espécies de prisão constitucionalmente estabelecidas, haja vista que o inciso LXI do artigo 5º da Constituição Federal expressamente prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.(Habeas Corpus nº 0027246-58.2014.4.03.0000, 5ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Paulo Fontes. j. 01.12.2014, unânime, DE 10.12.2014)
6- AD CONCLUSIO
Há um projeto de lei revogando o artigo 236 do Código Eleitoral em que o princípio da proporcionalidade é usado com muita propriedade na justificativa do Projeto de Lei:
(…) sopesando o direito de voto e o direito de segurança da sociedade contra os indivíduos que atentam contra os valores que lhe são caros, o legislador preferiu o primeiro, estabelecendo algumas exceções. No entanto, passadas mais de quatro décadas da entrada em vigor da norma e vivendo nós hoje em um mundo muito mais violento, penso que não mais se justifica tal garantia eleitoral. O livre exercício do sufrágio há de ser garantido de outra forma, mas não mais dando um salvo-conduto de uma semana a inúmeros criminosos, para que circulem tranquilamente no período das eleições. Em conclusão, embora o Código Eleitoral só permita, cinco dias antes e até quarenta e oito horas depois do encerramento da eleição, a prisão em flagrante delito, a prisão em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável e a prisão por desrespeito a salvo-conduto,podemos afirmar que qualquer prisão realizada no período supracitado, dentro dos limites da Constituição Federal, pode sempre ser executada.
[1] (Considerações sobre o artigo 236 do Código Eleitoral. In Revista do TRE/RS, n. 25, julho/dezembro 2007, ano XII, p.78).
[2] (No mesmo sentido: LEIRIA, Cláudio da Silva, op. cit, p. 83).
[3] SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. São Paulo: Forense, 2005. p. 136.