Introdução. A Lei nº 14.562, de 26 de abril de 2.023 alterou o tipo penal do art. 311 do Código Penal, procurando corrigir algumas lacunas que existiam na antiga redação do referido dispositivo. Trata-se da influência da jurisprudência de nossos tribunais que ao final, é consolidado no nosso ordenamento jurídico. Contudo, como veremos abaixo, nem todas as situações incidentes na prática jurídica criminal foram totalmente abrangidas pelas modificações. Como sempre pensamos, antes da efetiva alteração, existe necessidade de prévia análise da correta redação e dos seus verbos para a punição de condutadas como a conduta de trocar as placas do veículo. A apresentação desse artigo segue a linha acadêmica do esqueleto do tipo penal.
Tipo penal. O delito de adulteração de sinal identificador de veículo está previsto no art. 311: “Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas combinações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente. Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.” A Lei nº 14.562, de 26 de abril de 2.023 alterou o tipo penal do art. 311 do Código Penal. Publicada no Diário Oficial da União em 27 de abril de 2.023, nesta data (27 de abril), a lei possui vigência e sendo uma lei penal mais rígida, não possui retroatividade. O nomen iuris não fala mais em veículo automotor, mas sim em veículo.
Bem jurídico. Protege-se a fé pública, no que concerne ao sinal identificador do veículo.
Sujeitos do delito. Sujeito ativo: é qualquer pessoa. Sujeito passivo: tratando de crime contra a fé (credibilidade) pública, é o Estado, admitindo-se o sujeito passivo secundário.
Tipo objetivo. O elemento objetivo inclui o adulterar que significar mudar, alterar ou remarcar, que significa marcar de novo. A Lei nº 14.562/23 introduziu o verbo “suprimir” que significa cancelar, eliminar. Objeto material. O objeto material é o veículo automotor, ou seja, aquele que se move por meio mecânico, eminentemente o motor de explosão, abrangendo o automóvel, motocicleta. Mas a partir da entrada em vigor da Lei nº 14.562/2.023 passou a incluir o veículo elétrico, híbrido, de reboque, de semireboque (apoia-se parte do seu peso, necessitando de um suporte mais robusto) ou ainda de suas combinações (reboque e também semireboque) e ainda os componentes ou equipamentos. Anteriormente o reboque não era compreendido porque a inclusão nesse caso seria utilização de analogia in malam partem (STJ, HC 134.794-RS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 28-9-2010). Andou bem a Lei nº 14.562/23 em razão do princípio da legalidade. Agora a adulteração abrange o veículo ou ainda o reboque.
Supressão do chassis por raspagem. Ato comum do agente criminoso é o de suprimir por raspagem o número de chassi, dificultando a identificação original do veículo. Entendeu Mirabete (Manual de direito penal, v. 3, parte especial, p. 290) que tal conduta seria atípica, eis que ato preparatório, mas atualmente com a redação promovida pela Lei nº 14.562/2.023, a raspagem do chassis é abrangida. Ao introduzir o verbo “suprimir” está se falando em eliminar o chassi e a raspagem do chassi definitivamente elimina essa numeração.
Agente criminoso que conduz o veículo. Normalmente, surpreendida é a pessoa que se utiliza de automóvel com chassi adulterado (e, portanto, objeto ilícito). A conduta agora está prevista no art. 311, § 2º, inciso III do Código Penal. Assim, pune-se o agente criminoso que conduz tal automóvel, sabendo que possui numeração adulterada. Por outro lado, entendendo que tipifica o crime, não se confundindo com a norma administrativa do art. 230, I do CTB: TJSP, Apelação 993080314292, decisão em 22-5-2009.
Aposição de fita adesiva. Vamos supor que o agente criminoso insira uma fita adesiva, transformando o número “6” em “8”. Nesse caso, a alteração da Lei nº 14.562/23 não resolveu o problema, pois o agente não está suprimindo a placa e nem remarcando (caso do chassi). A polêmica continua a existir acerca da abrangência do verbo “adulterar”. Isso porque parte do STJ entendia que a aposição de fita isolante seria facilmente perceptível, sendo crime impossível (Resp 503.960/SP,16-03-2010, Dje 19-04-2020. Há um leve fortalecimento na corrente que admite típica a conduta, pois anteriormente havia julgado que entendia que placa não seria considerada sinal identificado (RT 891/616). 1ª corrente. O verbo “adulterar” inclui a conduta de por fita adesiva na placa. Assim, constitui crime do art. 311 inserir fita adesiva na placa, para alterar o número, fugindo da aplicação de multa de trânsito administrativa (STJ, AgRg no REsp 1327888/SP, 5ª T., DJe 11/03/2015). O STJ entendeu que a substituição de uma placa por outra tipifica o crime (REsp 1.189.081-SP, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 14-4-2011). Também constitui crime a substituição de uma placa por outra (STJ, Resp 769290/SP, 5a Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 6-3-2006, AgRg no Resp 783622/DF, j.13-4-2010, Dje 3-5-2010). 2ª corrente. A inserção de fita adesiva não é fato típico, pois a adulteração exige o caráter permanente (TJSP, AC 990.08.047281-0, j. 11-11-2008) (Maximilianus Cláudio Américo Führer, Resumo de direito penal, p. 204) e trata-se de falsificação grosseira, não havendo atingimento da fé pública (STJ, REsp 503.960-SP, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 16-3-2010). A conduta portanto,é típica apenas no direito administratio sancionador, cabendo punição apenas na esfera administrativa (RT 836/540). Com a alteração promovida pela Lei nº 14.562/2.023, a questão infelizmente, não ficou superada.
Conduta de esconder a placa para evitar a multa. Quando se esconde a placa, está se adulterando, remarcando ou suprimindo? Na verdade, não existe amoldamento em nenhum dos três verbos. Deveria existir o verbo “esconder” por exemplo, atendendo o princípio da legalidade. Nesse ponto, já decidiu o STJ sobre a atipicidade no seguinte caso: “Apurou-se que o denunciado instalou dispositivo em seu caminhão com o qual lhe era possibilitado ocultar, quando lhe conviesse, o número da placa do veículo, tal como se depreende das fotografias acostadas às fls. 40/44. Com este implemento engenhoso, transitava na data dos fatos com seu caminhão pela rodovia acima especificada e no momento em que se aproximou da praça de pedágio, permaneceu atrás de outro caminhão na faixa destinada aos veículos que contêm o “tag” do sistema “Sem Parar”, sendo certo que com esta atitude se aproveitou da cancela aberta para não pagar o pedágio e, ainda, não foi fotografado em virtude da supressão das placas de seu veículo” Nessa hipótese, o STJ entendeu que a simples ocultação de placa para não pagar pedágio não constitui fato típico, já que se exige o adulterar e o remarcar (HC 139.199-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 23-2-2010). A falta do verbo “ocultar” ou “esconder” torna a conduta atípica ao nosso ver.
Conduta de trocar as placas. A reforma do tipo penal pela Lei nº14.562/2.023 também não resolveu esse problema de tipicidade formal. Existe julgado do STJ entendendo que a troca de placas constituiria “adulteração” de sinal identificador: HC 195.519/MS, j. em 21-6-2.011, Dje de 29-6-2011). Mas também existe julgado que entende que seria apenas infração administrativa (art. 230, inciso IV do CTB), já que para a tipificação formal haveria necessidade de adulteração. Somente se se entender que quando se retira a placa original, suprime-se a placa. Na verdade, deveria existir, atendendo ao princípio da legalidade, a inserção do verbo “trocar” sinal identificador.
Tipo subjetivo. É o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de adulterar , remarcar ou suprimir o número de chasi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador.
Consumação. Consuma-se com a adulteração, remarcação ou supressão do chassi ou do sinal identificador do veículo. A tentativa é admitida.
Pena aumentada (art. 311, § 1º). O crime do caput é aumentado em 1/3 se o agente comete o delito no exercício de função pública ou em razão dela.
Condutas equiparadas (art. 311, § 2º, incisos I a III). A Lei nº 14.562/23 alterou o § 2º, incluindo os incisos II e III ao referido parágrafo). Inciso I. Responde pelo crime qualificado, o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial. Note-se que o legislador não incluiu o verbo suprimir, mas apenas o veículo remarcado ou adulterado. Trata-se de punição do funcionário público (p. ex. pertencente ao Detran) que se envolve em “esquema” de “esquentar” o veículo, dando-lhe aparência lícita. A consumação ocorre com a contribuição do funcionário para o licenciamento ou registro. Em outra palavras, deve ocorrer essse licenciamento ou registro (Fabbrini e Mirabete,Código penal interpretado, p. 1.343). Inciso II. Petrechos de falsificação ou adulteração de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador. Inclui os verbos adquirir, receber, transportar, ocultar, manter em depósito, fabricar, fornecer a titulo onerosos ou gratuito, possuir ou guardar maquinismo (conjunto de peças articuladas de uma máquina), aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado (elemento normativo do tipo). Permite-se a punição daquele que está de posse desse maquinismo, mas não encontra-se com o veículo com chassi adulterado. Mas a inclusão da expressão “especialmente” inclui a necessidade de direcionamento para tais fins. Assim, no caso de adulteração de chassi, é possível estar na posse de uma lixadeira (instrumento abrasivo) que possibilita suprimir a identificação original do chassi. Inciso III. Posse de veículo com chassi suprimido. Esse novo tipo legal espanca a dúvida anterior sobre a admissão da receptação em relação a veículo com chassi adulterado: se era produto de crime anterior. Abrange aquele que “aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado.”
Bipartição da conduta de possuir objeto produto de crime. Embora parte da jurisprudência já admitisse a receptação oriunda do art. 311 (STJ, REsp 1722894/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 17/05/2018, DJe 25/05/2018), atualmente a dúvida ficou afastada. Se o agente criminoso está de posse de objeto oriundo de furto ou roubo, há o delito de receptação. Mas se por outro lado, tiver a posse de objeto oriundo de alteração de sinal identificador, há o delito do art. 311, § 2º, inciso III do Código Penal.
Conduta qualificado do art. 311, § 3º (prática de atividade comercial ou industrial). Agora existe definitivamente uma bipartição do crime de receptação de produto de crime em atividade comercial ou industrial. Se a receptação se vincular ao furto e roubo, o amoldamento será do art. 180, § 1º (receptação qualificada) do CP. Se se tratar de receptação de veículo com chassi adulterado no exercício de atividade comercial ou industrial, a receptação será do art. 311, § 3º do Código Penal, que passa a ganhar maior destaque. Abrangência. Fazendo referência aos incisos II e III do § 2º do art. 311 do Código Penal, a conduta abrange aquele que possui mecanismo especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração e ainda o agente que mantém em depósito veículo com sinal identificador adulterado. Em ambas as situações, deve existir o exercício de atividade comercial ou industrial. Falando em exercício, entende Fabbrini e Mirabe sobre a necessidade da habitualidade (Código penal interpretado, p. 925). Equiparação da atividade comercial ou industrial. Nos moldes do § 4º do art. 180 do Código Penal, a Lei nº 14.562/23, equiparou a atividade comercial a qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o praticado em residência.
São estas as considerações.