Em coautoria com Mariana Dias
1. Introdução
A Lei nº 14.550, publicada no mês de abril de 2023, inseriu o art. 40-A na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), com o seguinte teor:
Art. 40-A. Esta Lei será aplicada a todas as situações previstas no art. 5º, independentemente da causa ou motivação dos atos de violência, ou da condição do ofensor ou da ofendida.
Tal alteração normativa retoma o campo de aplicação dos dispositivos e institutos da LMP a partir da já conhecida redação de seu art. 5º:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Em síntese, de acordo com a doutrina e a jurisprudência elaboradas desde a publicação da Lei que se apresenta como ação afirmativa para proteção de direitos humanos de mulheres, no ano de 2006, é sabido que a chamada Lei Maria da Penha se aplica em casos de violência praticada contra mulher por homem com quem a vítima possua relação de parentesco, habitação ou afeto (relação amorosa presente ou pretérita).
Mas, como o artigo 5º traz a expressão “ação ou omissão baseada no gênero”, duas interpretações jurisprudenciais e correntes doutrinárias se contrapuseram nos últimos anos:
- a que propõe, no caso concreto, a verificação acerca da motivação de gênero quando da ocorrência da violência e;
- a que desconsidera o caso concreto e entende que qualquer ato de violência doméstica ou familiar contra uma mulher por pessoa com quem essa possua relação de afeto/parentesco é, de forma geral e abstrata, um tipo de violência baseada no gênero. Tal interpretação se fundamenta na noção objetiva de que há um fator sociocultural e histórico de assimetria de gênero entre homens e mulheres, estruturante das relações sociais no espaço público e privado e que, estatisticamente, evidencia, por anteriores dados do Sistema de Saúde e por dados atuais da Segurança Pública, que a violência contra mulher praticada por essas pessoas e nesse espaço é a maior causa de mortes violentas de mulheres em todo o mundo[1].
Aparentemente, a nova redação do art. 40-A encerra essa discussão, tornando prevalente e indiscutível o segundo entendimento para se decidir se, no caso concreto, deve ou não ser aplicada a Lei Maria da Penha. Como consequência prática, define-se que tais processos serão encaminhados e tramitarão nos Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e não, pelas Varas Criminais Comuns ou Juizados Especiais Criminais.
Contudo, ainda prevalecem entendimentos variados acerca da presunção absoluta ou relativa de gênero, para justificar a incidência da Lei nº 11.340/2006 nas situações de violência doméstica contra a mulher, descritas em seu art. 5º. As controvérsias se tornam mais complexas quando se indaga se referida Lei deve incidir na violência doméstica contra mulher praticada por outra mulher, e, se positiva a conclusão, se a Lei pretende impor presunção absoluta ou relativa de violência de gênero em tais casos.
O presente artigo pretende refletir acerca da existência ou não de presunção de violência de gênero na violência doméstica contra a mulher, e na possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha, e existência de presunção absoluta de violência de gênero, quando a violência é praticada por mulher contra mulher no contexto do art. 5º da Lei nº 11.340/2006.
2. A presunção relativa ou absoluta de gênero na violência doméstica contra a mulher
A despeito da inovação trazida pela Lei nº 14.500/2023, alguns (as) autores (as) ainda defendem a interpretação restritiva, no sentido de que a presunção de violência de gênero no âmbito doméstico deve ser relativizada e afastada quando não estiver evidente.
Esse é o posicionamento de SCARANCE FERNANDES e SANCHES CUNHA[2], para quem a nova redação do art. 40-A não se aplica em qualquer situação de violência doméstica. Para eles (as), a presunção relativa pode ensejar uma aplicação intransigente da norma, ignorando infrações penais que eventualmente ocorram em contexto doméstico e que não sejam direcionadas de forma direta à mulher. Tal situação levaria ao desvirtuamento do espírito de proteção da mulher, sobrecarregando os Juizados de Violência Doméstica com processos comuns, o que comprometeria a necessária agilidade para deferir medidas e outras providências, na prevenção de feminicídios. Em suas palavras:
(…) Para reforçar nossa posição, citamos alguns casos – reais – antes submetidos a um Juízo Comum e que seriam encaminhados ao Juizado de Violência Doméstica, caso adotado o entendimento da presunção absoluta: a filha, mediante fraude, simula um sequestro para que seja pago resgate por seus genitores; traficante guarda drogas em sua residência e intimida todos os familiares (homens e mulheres) para que não o denunciem; integrante de organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro usa o nome de empregada doméstica para ocultar bens sem que ela saiba. Nesses casos, o gênero da genitora, das familiares mulheres e da funcionária não foram determinantes. (…)”
Em sentido contrário, ÁVILA e BIANCHINI[3], que participaram da redação e aperfeiçoamento do anteprojeto da Lei nº 14.550/2023, entendem que, sempre que houver a prática de violência contra a mulher em um contexto de coabitação, relação íntima de afeto ou familiar, haverá a incidência da Lei Maria da Penha. Tais autores argumentam que a nova Lei, aprovada em abril de 2023, encontra-se alinhada aos propósitos da Lei Maria da Penha, ampliando a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Aduzem que tal interpretação é a que se encontra em consonância com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, o qual destaca a existência de diferentes características atribuídas culturalmente a homens e mulheres, com cargas valorativas distintas, sendo que as de menor valor são reservadas às mulheres. Conforme o Protocolo, em um cenário formatado para a perpetuação da hierarquia estrutural decorrente da relação de poder construída entre os gêneros, a violência doméstica seria uma das formas em que referida assimetria e relação de poder culturalmente estabelecida se manifesta.
De fato, apesar de respeitáveis opiniões diversas, entende-se que se a própria Lei, agora, menciona que a motivação ou causa da violência praticada pelo ofensor é irrelevante para a aplicação da Lei, desde que presentes as condições do art. 5º da Lei nº 11.340/2006, não se vislumbra a possibilidade de questionar a existência de violência de gênero, quando praticada por um homem contra uma mulher, pois isso significa apenas a correta interpretação da lei, de acordo com sua finalidade desde o ano de 2006, quando entrou em vigor.
Ora, a violência contra a mulher se trata de um problema estrutural, originado de uma construção histórico-cultural que, de maneira extremamente violenta, incutiu socialmente a ideia da supremacia do homem sobre a mulher. Especialmente com o fim da Idade Média, o espaço da mulher foi restringido ao ambiente doméstico, para atividades não remuneradas ou pouco valorizadas socialmente, vinculadas a satisfazer as necessidades e determinações masculinas, especialmente no espaço do lar. A situação é bem ilustrada por FREDERICI[4], ao apontar a perda de espaço das mulheres em todas as áreas da vida social, entre os séculos XVI e XVIII:
Aqui, nesse período, é possível observar uma constante erosão dos direitos das mulheres. Um dos direitos mais importantes que as mulheres perderam foi o de realizar atividades econômicas por conta própria, como femmes soles. Na França, perderam o direito de fazer contratos ou de representar a si mesmas nos tribunais, tendo sido declaradas legalmente como “imbecis”. Na Itália, começaram a aparecer com menos frequência nos tribunais para denunciar abusos perpetrados contra elas. Na Alemanha, quando uma mulher de classe média tornava-se viúva, passou a ser comum a designação de um tutor para administrar seus negócios. (…) Em suma, além da desvalorização econômica e social, as mulheres experimentaram um processo de infantilização.
Ao mesmo tempo, foram se criando padrões de comportamento que afastaram as mulheres das ruas e dos espaços de convivência comunitários, com a perseguição daquelas que insistiam em fazê-lo – seja por meio da humilhação e criação de estereótipos e lendas, seja até mesmo com a violação de seus corpos, sem consequência para os agressores, e a criminalização de seus comportamentos, que resultaram em penas corporais e até mesmo nas mortes levadas a cabo com as caças às bruxas.
O afastamento das mulheres dos espaços públicos, e a proibição do exercício de inúmeros ofícios – relacionados à medicina, ao mercado, ao artesanato, etc. – sedimentou a desigualdade de poder entre homens e mulheres, e a desvalorização do gênero feminino que hoje se observa. Resultou na desigualdade de acesso a oportunidades de trabalho, e na própria violência de gênero, retratada nas estatísticas policiais ainda atuais já citadas.
Sendo assim, é praticamente impossível que a violência praticada por um homem contra uma mulher no âmbito das relações domésticas não esteja contaminada, em algum momento, pela desigualdade de gênero. Qualquer que seja o gatilho de referida violência, ela representa risco agravado para a vítima mulher, que historicamente se viu obrigada a se submeter ao homem, comportar-se de maneira predeterminada socialmente (sob pena de ser humilhada e culpabilizada pela violência que sofre), viver, muitas vezes, sob sua dependência econômica, e sofrer calada as mais cruéis violações físicas, psicológicas e sexuais no âmbito doméstico.
Tal fato, aliado ao espírito protetivo da Lei nº 11.340/2006, e à redação trazida pelo seu art. 40-A, inserido pela Lei 14.550/2023, afasta qualquer possibilidade de relativizar a presunção de violência de gênero, nos crimes praticados por homens contra mulheres no âmbito doméstico – razão pela qual temos como acertada a citada posição defendida por ÁVILA e BIANCHINI.
A exclusão que se fazia, anteriormente à nova Lei 14.550/2023, de casos concretos em que mulheres eram vítimas de violência doméstica e familiar por homens com quem tinham relação de parentesco ou afeto, gerava enfraquecimento à Lei Maria da Penha, risco efetivo para essas mulheres em situação de violência e evidente injustiça. Situações graves de ameaças praticadas por irmãos contra irmãs (quando envolviam conflitos de ordem patrimonial), por exemplo, ou por filhos contra suas mães idosas, acabavam nos Juizados Especiais ou Varas Criminais comuns, sem a possibilidade de deferimento de medidas cautelares de urgência em favor das vítimas, e com a manutenção dos agressores nos locais de residência das ofendidas. A aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, não possui a mesma coercitividade das medidas protetivas aplicadas com fulcro na Lei Maria da Penha, cujo descumprimento pode ensejar na prisão do agressor e configura crime próprio, previsto no art. 24-A do mesmo diploma legal. Ademais, a rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, em que pese ainda exija aprimoramento, encontra-se mais bem estruturada e em condições de interferir precocemente na proteção da vítima, com chances de estancar a violência identificada. O encaminhamento da mulher vítima de violência doméstica para a Justiça não especializada, sem o necessário olhar de gênero, resulta, na grande parte das vezes, na perpetuação e prolongamento das agressões, com o silenciamento da mulher que buscou a proteção judicial, pois essa foi insuficiente.
O que impõe a aplicação de uma lei que se apresenta como ação afirmativa em proteção de direitos humanos de mulheres não é exatamente sua vulnerabilidade, a ser investigada em determinado caso concreto, e sim uma verdadeira desigualdade de gênero estrutural e objetiva:
A homens e mulheres são atribuídas diferentes características, que têm significados e cargas valorativas distintas. O pouco valor que se atribui àquilo que associamos culturalmente ao “feminino” (esfera privada, passividade, trabalho de cuidado ou desvalorizado, emoção em detrimento da razão) em comparação com o “masculino” (esfera pública, atitude, agressividade, trabalho remunerado, racionalidade e neutralidade) é fruto da relação de poder entre os gêneros e tende a perpetuá-las. Isso significa dizer que, no mundo em que vivemos, desigualdades são fruto não do tratamento diferenciado entre indivíduos e grupos, mas, sim, da existência de hierarquias estruturais. A assimetria de poder se manifesta de diversas formas. Ela se concretiza, por exemplo, em relações interpessoais – a violência doméstica é uma forma de concretização dessa assimetria, bem como a violência sexual. Entretanto, por trás e para além de relações interpessoais desiguais, existe uma estrutura social hierárquica, que é o que molda, dentre outros, as relações interpessoais, os desenhos institucionais e o direito. (ÁVILA e BIANCHINI, ob. cit.)
Conforme destaca DUTRA[5], no Superior Tribunal de Justiça, até o ano de 2022, prevalecia a posição de que a motivação de gênero, na violência praticada em contexto de violência doméstica, era relativa. Mas, em 2022, com o voto da Relatora Ministra Nancy Andrighi, sedimentou-se o entendimento no sentido da presunção absoluta da motivação de gênero. Em seu voto, a Ministra destaca que a demonstração específica da subjugação feminina é desnecessária para a aplicação do sistema protetivo da Lei Maria da Penha, pois a organização social brasileira ainda é fundada em um sistema hierárquico de poder baseado no gênero, situação que o referido diploma legal busca coibir[6]. Tal decisão deu ensejo à revisão dos Enunciados nº 5 e 6 da edição nº 41 do Jurisprudências em Teses do STJ[7], que passaram a afirmar que a hipossuficiência, vulnerabilidade ou fragilidade da mulher são presumidas nas violências contra elas praticadas nas circunstâncias do art. 5º, Lei nº 11.340/2006.
3. Aplicabilidade da Lei nº 11.340/2006 na violência doméstica praticada por mulher, e a presunção relativa de gênero
Estabelecida a presunção absoluta da violência de gênero exercida por homem contra mulher no contexto doméstico descrito no art. 5º da Lei nº 11.340/2006, cabe indagar sobre a aplicabilidade de referida Lei em situações de violência doméstica praticada por mulheres contra mulheres, e, caso aplicável a Lei em tais hipóteses, se é possível aferir presunção absoluta de motivação de gênero.
Primeiramente, insta registrar que o parágrafo único do artigo 5º é explícito ao mencionar que as relações pessoais que caracterizam a violência doméstica (coabitação, parentesco e relações íntimas de afeto) independem de orientação sexual. Destarte, fica evidente a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em desfavor de agressoras mulheres, em uma relação homoafetiva entre mulheres, por exemplo.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias[8] registra que, para incidência da Lei Maria da Penha, o sujeito ativo pode ser tanto homem como mulher, desde que a violência tenha sido perpetrada no âmbito das relações domésticas. Assim, a autora menciona a possibilidade de incidência da Lei Maria da Penha nas relações homoafetivas, na violência praticada por companheira de quarto ou coabitante de república estudantil, por filha contra a mãe ou por patroa contra a empregada doméstica.
Esse é o entendimento sedimentado no Superior Tribunal de Justiça, também registrado no Enunciado nº 03 da edição nº 41 do Jurisprudências em Teses do STJ[9]:
3) O sujeito passivo da violência doméstica objeto da Lei Maria da Penha é a mulher, já o sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação.
Contudo, a evidente relação assimétrica entre um homem agressor e a vítima mulher, que leva à naturalização da violência quando uma mulher diverge ou não aceita a pseudo-autoridade masculina, nem sempre se encontra presente nos conflitos domésticos entre duas mulheres. Por isso, nesse caso, é imprescindível a análise da situação de violência a partir de uma perspectiva de gênero, sem a qual se incorrerá no risco de o próprio sistema de Justiça reproduzir estereótipos. Conforme destaca o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[10], de aplicabilidade obrigatória por força da Resolução nº 492/2023 CNJ, a atribuição social de papéis e características diversos a homens e mulheres, com diferentes valorações, resvala na perpetuação da desigualdade estrutural entre eles. Assim, as magistradas e magistrados devem estar atentas (os) para a existência de tais marcadores sociais, refutando-os e não os reproduzindo em suas atuações.
Apesar de se defender que, no caso de mulheres agressoras, não há uma presunção absoluta de violência de gênero, não há conclusão pela não aplicação da legislação mais protetiva. Os valores patriarcais construídos ao longo da História que se encontram arraigados socialmente podem ser reproduzidos por mulheres, inclusive em forma de violência contra outras mulheres. Nessas situações, é possível aferir a motivação de gênero na prática da violência, e, consequentemente, justifica-se a incidência do sistema protetivo contemplado pela Lei Maria da Penha.
Nessa linha, CAMPOS, MAINIERI e ALVES[11] analisam o Conflito de Competência nº 88.027 – MG (2007/0171806-1), em que o STJ afastou a aplicação da Lei Maria da Penha em agressão praticada por uma irmã contra a outra. Segundo consta, a acusada teria ido à porta da residência da vítima e, aos gritos, proferido ofensas contra sua honra, chamando-a de “prostituta” e “vagabunda”, e não merecedora de morar na ilha onde residiam. Apontam que, na decisão, o STJ teria se pautado sem o olhar de gênero, afirmando que a situação de tratava de “mera desavença entre mulheres com relacionamentos conturbados”, naturalizando a violência e negando proteção à vítima. As autoras propõem uma reescrita da decisão, posicionando-se pela aplicação do sistema protetivo da Lei Maria da Penha, já que as ofensas foram proferidas a partir de estereótipos construídos socialmente em desfavor da liberdade sexual e independência da mulher. Ainda, tais ofensas traduziam, segundo as autoras, um suposto poder de “mando”, exercido geralmente pelo homem, no que tange à possibilidade de permanência da irmã no local:
Assim, se uma mulher age na projeção do poder masculino patriarcal, pode-se falar em violência de gênero. É o que acontece no presente caso, na violência praticada pela irmã que, ao chamar M.S.O de “prostituta” e “vagabunda”, expressa-se por meio de palavras usadas por homens quando querem ofender mulheres. Ao fazer isso, a irmã está agindo como um representante masculino, exercendo controle sobre a sexualidade ao qualificá-la como “vagabunda”, afirmando que não poderia “viver na ilha” (questionando, portanto, seu pertencimento)[12].
As mesmas reflexões devem ser buscadas nas violências praticadas, em contexto doméstico, por nora contra sogra, sogra contra nora, mãe contra filha e esposa contra esposa, entre outros casos. O que se tem é uma interpretação adequada àquela situação específica, ao contrário do contexto em que o agressor é do gênero masculino e, objetivamente, nos termos do novo art. 40-A, deve ser aplicada a Lei 11.240/2006 e encaminhado o processo para as Varas Especializadas.
No caso concreto de agressão entre mulheres, portanto, deve ser questionado: houve motivação de gênero? Os valores patriarcais construídos ao longo da História que se encontram arraigados socialmente foram reproduzidos por essa mulher agressora? Se a resposta for sim, aplica-se a Lei Maria da Penha e todos os institutos que melhor protegem a vítima, além de ser encaminhado o processo à Vara Especializada. Se a resposta for não, a violência doméstica em tela não pode ser coibida da mesma forma, devendo, portanto, o caso permanecer na Justiça Comum.
CONCLUSÃO
O presente artigo tem como objetivo o alerta de que não é possível desprezar a razão de ser da própria ação afirmativa consubstanciada na Lei nº 11.340/2006, que é o de proteger de forma diferente as vítimas de violência originada por assimetria de gênero. Assim reza o art. 5º da LMP, especialmente após a modificação trazida pelo art. 40-A desse diploma. No caso de agressões praticadas por homens, essa presunção é absoluta pelas razões histórico-sociais objetivas já delineadas. No caso de agressões praticadas por mulher, deve-se verificar no caso concreto se houve reprodução dessa estrutura de desigualdade, se houve motivação de gênero (que não se confunde com o gatilho da violência, ou sua causa imediata), sendo, portanto, relativa a presunção de aplicação da lei especializada.
Compreender que toda e qualquer violência contra a mulher, no âmbito das relações domésticas descritas pelo art. 5º da LMP, é baseada em motivação de gênero, pode ensejar o enfraquecimento da norma e mesmo um tratamento desigual às próprias mulheres agressoras, que serão apenadas de forma mais severa, sem um fundamento que o justifique.
Se a violência praticada por homens contra mulheres em situação de violência doméstica decorre de relações assimétricas de poder, baseadas na crença naturalizada de dever de obediência e submissão da mulher perante o homem, nem sempre tais relações estarão presentes nos conflitos entre mulheres. Isso porque, ainda que a relação entre elas possa ser afetada por um desequilíbrio causado por estereótipos de gênero arraigados socialmente e assumidos por uma delas, essa presunção não é absoluta. Se a conduta de violência não se baseia no reforço dos papéis estigmatizantes relacionados à desigualdade de gênero, o âmbito de proteção legal deve se dar a partir das peculiaridades do caso concreto, evitando-se, com isso, que a Lei Maria da Penha se volte contra as próprias mulheres que busca proteger.
Conclui-se, portanto, que, quando se trata de agressora do gênero feminino, afasta-se a presunção de motivação de gênero absoluta descrita no art. 40-A, passando a ser necessário indagar e investigar a causa ou motivação dos atos de agressão. Apesar de a nova redação da lei trazer explicitamente que haverá sua aplicação a todas as situações previstas no seu art. 5º, independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida (grifo nosso), essa presunção jamais poderá ser absoluta quando se tratar de uma agressão praticada por uma mulher.
REFERÊNCIAS
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DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha (livro eletrônico): A efetivade da Lei nº 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/77954081/v4/document/106932536/anchor/a-106932536. Acessado em: 12/07/2023.
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FERNANDES, Valeria; CUNHA, Rogerio. Lei 14.550/2023: Altera a Lei Maria da Penha para garantir maior proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2023/04/20/lei-14-550-2023-altera-a-lei-maria-da-penha-para-garantir-maior-protecao-da-mulher-vitima-de-violencia-domestica-e-familiar/. Acesso em 07/07/2023.
FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
[1] Só no Brasil, ainda no ano de 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas – dados do FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf, acesso em 07/07/23.
[2] FERNANDES, Valeria; CUNHA, Rogerio. Lei 14.550/2023: Altera a Lei Maria da Penha para garantir maior proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2023/04/20/lei-14-550-2023-altera-a-lei-maria-da-penha-para-garantir-maior-protecao-da-mulher-vitima-de-violencia-domestica-e-familiar/. Acesso em 07/07/2023.
[3] ÁVILA, Thiago; BIANCHINI, Alice. Um interpretação autêntica quanto ao dever estatal de proteção às mulheres. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2023/04/20/lei-n-14-450-2023-uma-intepretacao-autentica-quanto-ao-dever-estatal-de-protecao-as-mulheres/. Acesso em 07/07/2023.
[4] FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. p. 199-200.
[5] DUTRA, Bruna Martins. Lei Maria da Penha: as alterações da Lei 14.550/23 com perspectiva de gênero. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-25/tribuna-defensoria-maria-penha-alteracoes-lei-14550-perspectiva-genero#:~:text=Trata%2Dse%20de%20importante%20altera%C3%A7%C3%A3o,de%20uma%20sociedade%20estruturalmente%20machista. Acessado em 06/07/2023.
[6] AgRg na MPUMP n. 6/DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 18/5/2022.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses. n. 41. Brasília, 2015. ed. rev atual. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%2041%20-%20Violencia%20Domestica%20e%20Familiar%20Contra%20Mulher.pdf. Acessado em 06/07/2023.
[8] DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha (livro eletrônico): A efetivade da Lei nº 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/77954081/v4/document/106932536/anchor/a-106932536. Acessado em: 12/07/2023.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses. n. 41. Brasília, 2015. ed. rev atual. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%2041%20-%20Violencia%20Domestica%20e%20Familiar%20Contra%20Mulher.pdf. Acessado em 06/07/2023.
[10] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Disponível em: <http:// www.cnj. jus.br< e <www.enfam.jus.br>. Acesso em 14 dez. 2022.
[11] CAMPOS, Carmen Hein de; MAINIRI, Clarissa; ALVES, Juliana Azevedo de Oliveira. “Prostituta”, “Vagabunda”: de irmã para irmã é violência baseada no gênero?. In: SEVERI, Fabiana (organizadora). Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023. p. 371-393.
[12] CAMPOS, Carmen Hein de; MAINIRI, Clarissa; ALVES, Juliana Azevedo de Oliveira. “Prostituta”, “Vabagbunda”: de irmã para irmã é violência baseada no gênero?. In: SEVERI, Fabiana (organizadora). Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023. p. 371-393.