com: Eduardo Luiz Santos Cabette
O crime de “Organização Criminosa” é previsto de acordo com o artigo 2º, combinado com, 1º., § 1º., da Lei 12.850/13.
Trata-se de crime de empreitada ou empreendimento em que os autores unem esforços para a finalidade da prática de infrações penais de forma estruturada, ordenada e com divisão de tarefas.
O ilícito em estudo é de ação penal pública incondicionada [1] até porque, sendo um chamado “crime vago” (sem vítima(s) determinada(s)) [2] seria impossível colher representação ou requerimento de quem quer que fosse.
Surge então uma dúvida que não tem sido enfrentada com a devida atenção pela doutrina:
Acaso uma “Organização Criminosa” seja criada com a finalidade da prática de crimes de ação penal pública condicionada ou de ação penal privada, poderia haver a persecução penal pela “Organização Criminosa” mesmo sem representação ou requerimento com relação aos crimes objetivados? Ou seria necessário que ao menos uma manifestação de algum ofendido ocorresse com uma representação ou requerimento, satisfazendo a chamada “condição de procedibilidade”?
Embora, como já dito, o tema não seja bem estabelecido pela doutrina, parece-nos que a resposta não comporta maiores dificuldades. Alguns argumentos podem pôr cobro às dúvidas, concluindo-se pela possibilidade de apuração do crime de “Organização Criminosa” independentemente de representação ou requerimento pelos crimes visados pelo grupo.
Um primeiro aspecto se refere ao fato de que o crime de organização criminosa é de ação penal pública incondicionada, então para a sua apuração não há necessidade de representação, apenas prova da existência de crimes visados, os quais existem com ou sem representação, já que não se pode confundir o direito material com o direito de ação ou com a mera condição de procedibilidade. Agora, para punir, em concurso material, os delitos, por exemplo, de estelionato (ação em regra condicionada) apurados, necessitará da representação em cada um deles. [3] Perceba-se que a lei não distinguiu a “Organização Criminosa” formada para a prática de infrações penais de ação penal pública incondicionada, condicionada ou privada. Menciona apenas o intento de praticar infrações penais, sejam elas quais forem, de modo que onde a lei expressa e eloquentemente não distingue, não cabe ao intérprete inventar distinções.
Outro argumento importante: Trata-se de crime de empreitada ou empreendimento. Assim, não é exigível nem mesmo a efetiva prática de algum crime visado pela organização, bastando sua formação com o intuito da prática dos crimes. Ora, se nem mesmo a efetiva prática de um único estelionato, por exemplo, é exigível para caracterizar a “Organização Criminosa”, muito menos o será a representação num caso de estelionato que se chegou a cometer. Na verdade, estamos diante daquilo que se tem convencionado chamar de “Crime de Obstáculo”, ou seja, infrações penais criadas pelo legislador, com o fito de “evitar a prática de outros delitos”. O crime em estudo é eminentemente preventivo. A repressão da “formação da organização criminosa” se faz “com o objetivo de evitar que esta venha a executar seus fins espúrios que consistem em outras infrações penais”. [4] Ainda neste ponto vale salientar o seguinte:
Não se deve confundir o crime em estudo com os chamados crimes acessórios ou parasitários, os quais dependem da existência de uma infração penal antecedente para se configurarem (v.g. receptação – artigo 180, CP). O crime do artigo 2º., da Lei do Crime Organizado não depende de nenhuma outra infração antecedente, ele é um “crime principal”, infração penal autônoma. Nem mesmo depende, como já visto, para sua consumação perfeita, do efetivo cometimento de infrações almejadas. Ademais, se estas foram cometidas, ao reverso do caso dos crimes parasitários, não o antecederão, mas o sucederão, ou seja, se há um crime antecedente, será o de organização criminosa e não os demais crimes almejados por ela. [5]
Vale dizer que o crime de “Organização Criminosa” antecede e não depende do destino dos crimes visados de forma que nem mesmo a inexistência destes últimos altera em nada a configuração do primeiro. A única coisa que afastaria a configuração da “Organização Criminosa” seria que a prática pretendida pelos agentes não constituísse “infração penal”, fosse um “fato atípico”. Nesse caso, não somente nãohaveria crime, como estaríamos diante do Direito de Livre Associação e Reunião constitucionalmente tutelado. Pode-se afirmar com segurança que o crime de “Organização Criminosa”, assim como todos os crimes que versam também sobre “associações criminosas” impõem exatamente o limite do Direito de Associação, que é nada mais do que a legalidade dos fins associativos (inteligência do artigo 5º., XVII, CF). [6]
Observe-se que mesmo diante de crimes acessórios ou parasitários, os quais dependem da existência de um crime antecedente, nem sempre o destino desse crime anterior exigido gera efeitos sobre o crime acessório (v.g. furto e receptação). Se há absolvição por falta de provas de autoria no furto, a receptação não se altera, já que o furto existiu. Se há arquivamento do Inquérito Policial igualmente. Se o autor do crime principal (v.g. furto) é inimputável, isso também não altera a configuração do crime acessório (v.g. receptação). Somente a decisão absolutória por inexistência do fato criminoso ou o arquivamento da investigação nestes termos, fará com que o crime acessório também deixe de existir (“accessorim sequitur principale”). [7] Porém, nem mesmo estamos, como já visto, diante de um crime acessório que depende de um crime antecedente. Estamos frente a um crime principal, em que a cogitação dos crimes visados já configura perfeitamente a infração penal em estudo. De modo que, como já frisado, nem mesmo a inexistência do crime anterior (salvo a questão da atipicidade penal) influi na configuração do ilícito de “Organização Criminosa”. Dessa forma é mais do que óbvio que o fato de os crimes visados pela organização serem de ação penal condicionada ou mesmo privada não altera a natureza da ação penal do crime do artigo 2º., da Lei 12.850/13. Não há exigência de representação, requerimento ou qualquer outra condição de procedibilidade para o ilícito previsto no artigo 2º., da Lei de Organização Criminosa. A ação penal se inicia normalmente por denúncia do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal púbica, não sendo cogitável sequer o manejo de Queixa – Crime quando os ilícitos visados forem de ação penal privada, a não ser que se esteja falando da ação penal privada subsidiária da pública nos casos em que esta é cabível (artigo 5º., LIX, CF c/c artigo 100, § 3º., CP e artigo 29, CPP). É óbvio que se os crimes visados forem de ação penal privada e chegarem a ser cometidos, serão processados desta maneira e iniciarão a persecução (fase de investigação) mediante requerimento e ação penal por Queixa – Crime. Da mesma forma, os crimes que dependem de representação, se efetivamente cometidos, dependerão dessa condição de procedibilidade para sua persecução e ação penal. Mas, isso tudo se refere aos crimes visados e não ao crime de “Organização Criminosa”. Este é de ação penal pública incondicionada e absolutamente nada pode mudar essa sua natureza.
Em havendo o cometimento de crimes de ação penal pública condicionada em organização criminosa, estes serão processados conjuntamente com o crime de organização por força de conexão probatória e teleológica (artigo 76, II e III, CPP). Agora, no caso de crimes de ação penal privada, embora existente também a mesma conexão, não será possível o processo conjunto, já que os titulares da ação penal são diversos, impondo-se a separação dos processos.
É de observar que menção às situações envolvendo crimes de ação penal privada é feita apenas a título de argumentação, pois dificilmente se encontrará uma infração dessas que tenha pena máxima superior a 4 (quatro anos). No entanto, será possível, embora também em menor número, ocorrer ilícitos transnacionais de ação penal privada, como, por exemplo, em casos de crimes contra a propriedade industrial (inteligência do artigo 1º. § 1º., da Lei 12.850/13). Ademais, tudo o que foi dito a respeito do crime de “Organização Criminosa”, se pode aplicar, “mutatis mutandis” ao ilícito de “Associação Criminosa”, previsto no artigo 288, CP no seio do qual não se exige que as infrações visadas tenham pena máxima maior que 4 (quatro) anos.
Conclui-se, portanto, que o crime de “Organização Criminosa” pode ser configurado quando os crimes visados forem de ação penal pública incondicionada, condicionada ou mesmo privada. Sua configuração e a natureza de sua ação penal (pública incondicionada) não se alteram devido aos crimes visados porventura serem dependentes de representação ou de ação penal privada. Dessa forma, nada impede a investigação e processo de pessoas envolvidas em uma “Organização Criminosa” que tem por objeto a prática de crimes de ação penal condicionada à representação ou mesmo privada, ainda que não haja cumprimento de condições de procedibilidade para tais crimes visados ou mesmo não tenham sequer sido cometidos ainda. Em havendo o efetivo cometimento, os agentes responderão em concurso material pela “Organização Criminosa” e pelos crimes cometidos, mas quanto aos segundos, satisfazendo suas condições de procedibilidade e regras específicas da ação penal.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017.
CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023
FREIRE, Antônio Flávio Rocha, GARCEZ, William. Organizações Criminosas Lei 12.850/13. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Parte Especial. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
[1] Cf. FREIRE, Antônio Flávio Rocha, GARCEZ, William. Organizações Criminosas Lei 12.850/13. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 976.
[2] Cf. CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023, p. 688. “(…) a vítima é a sociedade em geral, que é atingida pela violação do bem jurídico da paz pública. Não há vítima determinada”.
[3] A Lei 12.850/13, em seu artigo 2º., no preceito secundário, institui o concurso material de crimes quando os delitos visados são perpetrados efetivamente ao prever a pena de “reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas”. Cf. FREIRE, Antônio Flávio Rocha, GARCEZ, William. Organizações Criminosas Lei 12.850/13. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 976.
[4] Cf. CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023, p. 688 – 689.
[5] Op. Cit., p. 688.
[6] “Art. 5º., XVII, CF – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar” (grifo nosso).
[7] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 314. No mesmo sentido: GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Parte Especial. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 523.