Um dos assuntos do momento é o Projeto de Lei 1904/2024 que estabelece uma equiparação penal entre abortos em casos de gestações acima de 22 semanas (de cinco para seis meses) e o crime de homicídio. A equiparação abrangeria também casos de aborto derivado de situação de estupro, o qual não seria permitido nessa fase gestacional e seria igualmente equiparado a homicídio.
Como seria de se esperar, surgem vozes demonizando o Projeto de Lei e acenando com os chamados “direitos reprodutivos da mulher”. Alega-se que o prazo de 5 meses e meio não seria suficiente para que a mulher tomasse uma decisão em casos de estupro ou talvez mesmo para descobrir que teria engravidado! Afirma-se que a equiparação dos chamados “abortos tardios” ao crime de homicídio seria uma aberração de origem teocrática, entre outras coisas.
Toda essa balbúrdia e até mesmo a necessidade desse Projeto de Lei somente pode ocorrer num Brasil e num mundo corroído pela mais completa “corrupção da linguagem” e, consequentemente, do pensamento, da própria racionalidade ou mesmo da sanidade.
As pessoas estão acostumadas a aceitar bovinamente qualquer absurdo que fere de morte a realidade mais comezinha. Expressões como “aborto tardio” para o assassinato de crianças em fase final de desenvolvimento ou mesmo logo após o parto são aceitas acriticamente e até impostas como se fossem verdades inquebrantáveis e aqueles que as questionam são taxados de arbitrários, fundamentalistas ou coisas piores.
A troca da palavra “aborto” ou “abortamento” por “interrupção voluntária da gravidez” ou apenas pela sigla esterilizada “IVG” passa atualmente despercebida pela maior parte da população que nem sequer nota a manipulação que está sofrendo pela assepsia vocabular em andamento há muito tempo.
Poucos percebem a falsidade do chavão “meu corpo, minhas regras” quando há dois corpos e dois seres humanos em jogo. E chegam até mesmo a acreditar na mentira de “abortos seguros”!
O problema é que esse caldo cultural pútrido, exalando o cheio de morte e decomposição moral e intelectual, torna as pessoas cegas para uma realidade mais do que óbvia.
A verdade é que o PL 1904/2024 deveria ser considerado desnecessário numa sociedade em que o sistema jurídico funcionasse minimamente a contento. E isso não falo apenas sobre a realidade brasileira, mas mundial.
Nos estudos de Direito Penal é muito comum alguma dificuldade teórica para distinguir casos fronteiriços de Aborto e Homicídio ou Infanticídio. Geralmente a solução dada pelos manuais é o marco do “início do parto”. Antes desse evento haveria Aborto, depois Homicídio. Segue-se então a discussão a respeito de quando ocorreria o tal “início do parto” e surgem várias teses tanto no campo jurídico como na Medicina Legal (dilatação do colo do útero, dores do parto, desprendimento do feto e rompimento do saco amniótico).
Mas, toda essa discussão é infrutífera e prescindível. Isso porque o que realmente importa é ter uma noção bem estabelecida do que seja “vida intrauterina” e “vida extrauterina”. O crime de Aborto tutela a “vida intrauterina”, enquanto que os crimes de Homicídio e Infanticídio tutelam a “vida extrauterina”. É o bem jurídico tutelado que deve guiar o intérprete na aplicação da lei penal. O bem jurídico será elemento constitutivo essencial do crime a tipificar a conduta, enquanto que outras questões ou detalhes serão meras contingências acidentais.
Não obstante em geral a doutrina e a jurisprudência se omitem no ofício de ir a fundo à determinação dos critérios para a devida aplicação dos tipos penais em discussão. Isso se dá em meio à nebulosidade criada pela indigência da racionalidade quando se depara com um mundo em que as distorções vocabulares se sobrepõem à realidade e ao intelecto saudável. Também contribui para tal estado de coisas uma confortável acomodação provocada pelo terror de defender a verdade sobre qualquer tema num mundo em que quem afirma o óbvio é escrachado e “cancelado”.
Em meio a essa confusão e omissão torna-se difícil encontrar quem realmente tenha uma noção básica do bem jurídico que norteia a aplicação de um ou outro tipo penal em casos que poderiam ser fronteiriços, mesmo porque até nos bancos universitários de Direito não se tem a correta orientação.
A “vida intrauterina ou extrauterina” não se refere, como muitas vezes se pensa e diz, a um lugar, a um “locus”. Esses termos fazem referência, isto sim, a fases de desenvolvimento da vida humana em gestação. Deve-se entender por “vida intrauterina” tutelada exclusivamente pelo crime de Aborto, não aquela que simplesmente se encontra abrigada no útero, mas aquela que não tem condições de sobrevivência autônoma fora do útero com ou sem utilização de meios ordinários e extraordinários de sustento. Quanto à “vida extrauterina”, trata-se daquela vida humana que, esteja dentro ou fora do útero, tem condições de continuidade autônoma com ou sem emprego de meios ordinários ou extraordinários de sustento.
Perceba-se que o desenvolvimento científico – tecnológico nos indica cada vez mais que os conceitos de “vida intra ou extrauterina” não se referem a um lugar (dentro ou fora do útero). Não se trata de fundamentalismo religioso, de teocracia, mas de constatações diante da realidade científico – tecnológica. Essas alegações ofensivas são desvios erísticos marcados por desonestidade intelectual ou mesmo pura ignorância.
Hoje já existem os chamados “úteros artificiais” [1], cuja expressão nominativa novamente induz a um erro. Na realidade um “útero artificial” não é efetivamente um “útero”, mas uma espécie sofisticada de “chocadeira humana”. Portanto, haverá “vidas intrauterinas” fora do útero, seja porque já ali implantadas desde o início, seja porque houve alguma necessidade médica de retirá-las do útero propriamente dito e transferi-las para aquele ambiente artificial para preservar sua vida que, de outra forma, não poderia se sustentar. Obviamente, quando se fala em “meios extraordinários” anteriormente, não se está fazendo referência a um “útero artificial”, seu emprego indica que a vida ali preservada necessariamente somente pode ser “intrauterina”. Pode-se afirmar que o emprego de um “útero artificial” é um meio “mais que extraordinário” de manutenção de uma vida.
Assinale-se também que o alcance do que se considere “vida extrauterina” vai se ampliando cada vez mais com o desenvolvimento da medicina e da técnica. Há 60 anos um prematuro de seis meses de gestação tinha poucas chances de sobreviver, embora houvesse possibilidade. Hoje a sobrevivência, a capacidade de manter essa vida extraútero é enorme. Portanto, um ser humano com cinco, seis até nove meses já pode ser considerado como uma “vida humana extrauterina”, isso de acordo, não com qualquer dogma religioso, mas pela simples aplicação da razão natural e do saber médico – científico. Ele não precisa ser transplantado para um “útero artificial” com recurso “mais que extraordinário”. É capaz de vida autônoma com emprego, de acordo com o caso concreto, de meios ordinários e/ou extraordinários (estufa, medicação adequada, alimentação, nutrição parenteral, respiração temporária por aparelhos etc.). Não deveria ser preciso dizer que uma criança com 9 meses de gestação ou bem próximo disso, simplesmente sobreviveria normalmente sem necessidade de coisa alguma que não o devir da natureza vivificante.
Visto isso, quando alguém, com plena ciência de que se trata de uma vida humana extrauterina, embora ainda dentro do útero, elimina dolosamente essa vida nascente, não comete crime de Aborto e sim crime de Homicídio. Isso é mais do que evidente. O dolo não é de eliminar uma “vida intrauterina”, mas uma vida que se sabe ser já “extrauterina”. Por isso, numa sociedade sã moral e intelectualmente, a morte de uma criança após as 22 semanas de gestação ou 5 meses e meio, no atual “status” de desenvolvimento da ciência e tecnologia médicas, seria naturalmente um crime de Homicídio. Não deveria ser necessária uma lei nova que explicitasse isso de forma enfática porque as pessoas perderam seus nortes morais e intelectuais, e até mesmo sua conexão com o mundo real, inclusive a grande maioria dos chamados “juristas”.
E nos casos de gravidez oriunda de estupro? O direito da mulher não seria violado? Não teria ela direito de eliminar essa vida, de matar ou consentir na morte da criança?
É claro que não. A mulher não tem direito também de matar ou mandar matar o estuprador, ou tem? Nem mesmo num ordenamento jurídico onde a pena de morte seja prevista para o estupro (que não é nosso caso), a mulher mesma não pode dar essa ordem ou matar pelas próprias mãos numa suposta “vindita privada”. Por que deveria poder matar a criança no álveo materno, tratando-se de uma “vida extrauterina” tanto quanto o estuprador criminoso?
O assassinato de crianças em fase avançada de desenvolvimento no interior do útero e sua expulsão ou retirada posterior, nada mais é do que uma insidiosa e hipócrita manobra para transfigurar um crime de Homicídio em Aborto. É quase tão absurdo como se, para matar um adulto, o colocássemos dentro de um “útero artificial” e depois alegássemos que não foi um homicídio, mas um aborto devido ao local onde a conduta se operou contra a vítima.
Nesses casos o médico (se é que mereça esse nome) pode fazer duas coisas: a)Induzir o parto e matar a criança fora do útero; b)Matar a criança dentro do útero e retirá-la “post mortem” por intervenção cirúrgica ou outros meios (sucção, espostejamento e curetagem etc.). A escolha do segundo procedimento não é informada por nada mais do que a hipocrisia e a malícia de pretender fugir de uma tipificação criminal de Homicídio, aproveitando o fato de que até no mundo jurídico o conceito de “vida intrauterina” é confundido com um “locus” ou lugar, em detrimento de seu verdadeiro sentido. Frise-se ainda que a escolha também não se faz por algum cuidado com a saúde da mulher, porque fosse assim, a opção seria a do primeiro método, bem menos arriscado e traumático para ela, desde que a execução do filho não fosse feita sob suas vistas.
A dura realidade é que não deveríamos precisar do PL 1904/2024 para tipificar como homicídio casos de morte de crianças em fase de desenvolvimento avançada. Só precisamos porque vivemos em um mundo em que é necessário “provar que a grama é verde”, para usar uma expressão de Chesterton. [2] E mesmo a iniciativa de legislar o óbvio é duramente combatida como se fosse a sanidade a maior das insanidades e o notório o mais profundo dos mistérios.
Não nos iludamos. Já existem correntes que defendem a ampliação da classificação de “aborto tardio” para a eliminação de crianças após o parto, inclusive no meio acadêmico, [3] e então os médicos não mais precisariam do artifício, talvez um pouco incômodo e trabalhoso, de matar a criança ainda dentro da mãe. Se as coisas seguem como vão seguindo, ninguém irá notar que se trata de um homicídio e todos engolirão o eufemismo espúrio do “aborto tardio” mais uma vez nessa imensa ladeira escorregadia que, cada vez mais rápido, conduz a humanidade à autodestruição intelectual, moral e espiritual.
REFERÊNCIAS
LIMA, Jônatas Dias. Prática do “aborto pós – nascimento” ganha defensores no mundo acadêmico. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/pratica-do-aborto-pos-nascimento-ganha-defensores-no-meio-academico-egsrbjqxywkrxj05zgb7aiy4u/ , acesso em 16.06.2024.
MAIER, Jonas. Chesterton no Século XXI. Disponível em https://www.sociedadechestertonbrasil.org/chesterton-no-seculo-xxi/ , acesso em 16.06.2024.
MOREIRA, Fernando. Primeiro Complexo com Úteros Artificiais do Mundo Permitiria que Pais escolhessem características de bebês em “menu”. Disponível em https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/primeiro-complexo-com-uteros-artificiais-do-mundo-permitiria-que-pais-escolhessem-caracteristicas-de-bebes-em-menu-25627202.html , acesso em 16.06.2024.
[1] Cf. MOREIRA, Fernando. Primeiro Complexo com Úteros Artificiais do Mundo Permitiria que Pais escolhessem características de bebês em “menu”. Disponível em https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/primeiro-complexo-com-uteros-artificiais-do-mundo-permitiria-que-pais-escolhessem-caracteristicas-de-bebes-em-menu-25627202.html , acesso em 16.06.2024.
[2] Cf. MAIER, Jonas. Chesterton no Século XXI. Disponível em https://www.sociedadechestertonbrasil.org/chesterton-no-seculo-xxi/ , acesso em 16.06.2024.
[3] LIMA, Jônatas Dias. Prática do “aborto pós – nascimento” ganha defensores no mundo acadêmico. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/pratica-do-aborto-pos-nascimento-ganha-defensores-no-meio-academico-egsrbjqxywkrxj05zgb7aiy4u/ , acesso em 16.06.2024.