O inquérito policial é o instrumento posto à disposição da polícia judiciária para a apuração das infrações penais. A busca pelo conhecimento sobre a efetiva existência e materialidade do delito e da sua autoria constitui o objeto investigação.
A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2010) cuidou de prever a criminalização da requisição ou instauração de investigação de forma temerária ou maliciosa, bem como lançou bases para a regularidade do início formal da apuração criminal e administrativa.
Diante da recente vigência da legislação, é importante ter-se uma definição clara dos requisitos para a requisição ou instauração do inquérito (bem como de termos circunstanciados e procedimentos para adolescente infrator) de modo a não se reprimir a atividade investigatória.
O art. 27 da Lei 13.869/2019 dispõe:
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. (grifamos)
A leitura do texto é clara em referir que para a instauração formal da investigação, o que basta são indícios da prática de crime, ou seja, que exista um mínimo de informações preliminares que indiquem a possível ocorrência do delito.
Esta afirmação é importante para que não se confunda a justa causa, que é formada pelo binômio indícios de autoria e prova da existência do crime com o indício da prática de crime. Para a requisição ou instauração do inquérito policial, basta o indício de que um fato criminoso tenha ocorrido, sem a necessidade, sequer, de que seja apontada a mera suspeita de quem tenha sido o seu autor.
A respeito das designações da palavra indício, SANCHESSANCHES, Rogério Cunha; GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade: Lei 13.869/2019 Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 244 bem alerta de que a expressão, no direito processual penal, pode expressar o sentido de prova indireta como o de prova semiplena. No sentido de prova indireta é que temos a exata dicção do art. 239 do Código de Processo Penal, ou seja, a de que se considera indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.
No sentido de prova indireta, os indícios adquirem importante valor persuasivo, ao contrário do que o senso comum costuma indicar. A este respeito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal 470AP 470, pg. 17-18. Link http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/ap470votominlf.pdf, expressou a importância dos indícios para a aplicação do princípio do Livre Convencimento Motivado:
Assim, a prova deve ser, atualmente, concebida em sua função persuasiva, de permitir, através do debate, a argumentação em torno dos elementos probatórios trazidos aos autos, e o incentivo a um debate franco para a formação do convencimento dos sujeitos do processo. O que importa para o juízo é a denominada verdade suficiente constante dos autos; na esteira da velha parêmia quod non est in actis, non est in mundo. Resgata-se a importância que sempre tiveram, no contexto das provas produzidas, os indícios, que podem, sim, pela argumentação das partes e do juízo em torno das circunstâncias fáticas comprovadas, apontarem para uma conclusão segura e correta. (grifamos)
A mesma decisão ainda citaAP 470, p. 22. Link http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/ap470votominlf.pdf:
Este Egrégio Plenário, em época recente, decidiu que “indícios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente” (AP 481, Relator: Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 08/09/2011).
Na mesma linha, a decisãoAP 470, p. 24-25. Link http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/ap470votominlf.pdf enfatiza a importância dos indícios para a tomada de decisões:
“(…)
“IV – A prova nem sempre é directa, de percepção imediata, muitas vezes é baseada em indícios.
V – Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.
(…)
VII – O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.” (grifamos)
Indícios como prova indireta, portanto, possuem mais consistente valor persuasivo.
Por outro lado, o indício pode ser designado como sinônimo de prova semiplena, ou seja, como prova com reduzida carga probante e, por isso, apresenta deficiente força persuasiva. Trata-se da “prova limitada quanto à profundidadeTÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 501.“ de modo a recomendar maior análise e uma coleta mais detalhada de outros elementos a fim de que possa influenciar adequadamente o processo decisório.
Neste sentido, a Lei de Abuso de Autoridade “quis se referir a indício como sendo um mínimo de prova que pudesse lastrear a requisição da instauração ou a própria instauração do procedimento investigatório de infração penal ou administrativaSANCHES, Rogério Cunha; GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade: Lei 13.869/2019 Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 244“.
Portanto, para que esteja regularmente justificada a requisição ou instauração do procedimento investigativo, basta que tenhamos indícios com o significado de prova semiplena, fazendo-se um exame simples e perfunctório. Portanto, não se pode exigir que os indícios necessários sejam àqueles com o valor persuasório equivalente aos das provas (indícios com significado de prova indireta) e, tampouco, exigir que, para toda e qualquer notícia de crime, sejam necessários indícios de autoria e da existência do crime é, ao nosso ver, entendimento equivocado e que não se coaduna com o próprio sentido da Lei de Abuso de Autoridade.
A confirmar a assertiva de que são necessários apenas indícios da existência do crime, tal como disposto no art. 27 da Lei de Abuso de Autoridade, verifica-se o teor do ainda original art. 5º, § 3º do Código de Processo Penal, que estabelece que a pessoa do povo que tiver conhecimento da existência da infração penal em que caiba ação pública, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito. Perceba-se que a verificação da procedência está atrelada à existência do fato noticiado, sem mencionar, em qualquer momento, a necessidade confirmação quanto aos indícios de autoria.
O inquérito policial é a sede, por excelência, da descoberta da efetiva ocorrência do delito, das suas circunstâncias e da sua autoria. Havendo a notícia e a probabilidade de que o fato tenha ocorrido, segundo as demais informações que acompanham a sua notícia, em não o sendo qualificado como mera conjectura ou suposição, há de se instaurar o procedimento investigatório. A busca pelos indícios mínimos de autoria constitui a fase seguinte da instrução pré-processual afim de, aí sim, verificar-se a existência (ou não) de justa causa.
Portanto, os indícios exigidos para a requisição ou instauração do procedimento investigatório são os relacionados à existência do crime, que devem ser diferenciados dos indícios que compõem o binômio inerente à justa causa, que se referem à autoria. A própria justa causa, por consequência, não é necessária para a requisição ou instauração do inquérito.
A justa causa é exigida para a decisão de indiciamento do investigado e para o oferecimento da ação penal, situações que ocorrem em fases mais avançadas da persecução penal e que exigem uma cognição mais qualificada. Para fins de requisição ou decisão liminar sobre a instauração de procedimento, bastam os indícios da existência do crime, sendo importante a distinção apontada para uma correta aplicação da lei, evitando prejuízo à condução das investigações.