O art. 128 do CP traz duas situações em que o aborto é admitido. O dispositivo prevê, no seu primeiro inciso, o aborto necessário (ou terapêutico), e, no segundo, o aborto sentimental (ou humanitário ou ético), ambos espécies do aborto legal ou permitido.
Se, no tocante ao aborto terapêutico, é a preocupação de salvar a vida da gestante que informa o preceito, o aborto sentimental é motivado pelos efeitos psicológicos da gravidez resultante do estupro. Explica HungriaComentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: v. 5, 1958, p. 312:
“Costuma-se chamá-lo aborto sentimental: nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida”.
A exclusão do crime depende de três condições:
(a) que o aborto seja praticado por médico: caso realizado por pessoa sem habilitação legal, haverá o crime.
(b) que a gravidez seja resultante de estupro
(c) prévio consentimento da gestante ou de seu representante legal: de preferência, que esse consentimento seja o mais formal possível (acompanhado de boletim de ocorrência), inclusive com testemunhas.
Não se exige a sentença condenatória do crime sexual. Esclarece, no entanto, PierangeliManual de direito penal brasileiro: parte especial, p. 121-122:
“É momento de lembrar que o médico, para realizar o aborto sentimental, não necessita da comprovação de uma sentença condenatória contra o autor do crime de estupro, nem mesmo se exige autorização judicial. Submete-se o facultativo apenas e tão somente ao Código de Ética Médica, mas ele deve, por cautela, se cercar de certidões e cópias de boletins de ocorrência policial, declarações, atestados etc. Atente-se que, se o médico for induzido a erro pela gestante ou terceiro, e se o aborto estiver justificado pelas circunstâncias que o levaram ao erro, haverá erro de tipo. Tratando-se de estupro de menor de 14 anos, quando a violência se presume, basta, para satisfazer a cautela, a prova da menoridade”.
Vê-se que embora não se exija prova cabal da existência do crime sexual, é imprescindível que se reúnam elementos mínimos que demonstrem a existência de uma relação sexual não consentida.
Com base nisso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou provimento a agravo de instrumento interposto contra decisão de primeiro grau que havia negado a expedição de alvará judicial para que uma adolescente (maior de 14 anos) se submetesse ao procedimento para abortar o feto que, segundo se alegava, provinha de concepção forçada. Dentre os argumentos – que encampavam parecer do Ministério Público –, não apenas a falta de elementos sobre a ocorrência de violência sexual, mas também a necessidade de proteção do ser humano desde a concepção e o estágio avançado da gravidez:
“Do exame atento dos autos não restou clara a ocorrência do estupro, pois a adolescente ao ser questionada narrou que embora fosse virgem, não percebeu que havia sido estuprada pelo abusador eis que estava dormindo. E mais. Ao acordar, percebeu e entrou em contato com o suposto estuprador para conversar sobre métodos anticoncepcionais, quando então foi informada por ele que havia realizado ‘coito interrompido’.
Como se vê, ainda que possa ter havido um relacionamento não desejado, a adolescente permaneceu silente até constatar a ausência da menstruação quando então comunicou à família ter sido abusada.
Ora, o chamado aborto sentimental é o caso em que a vítima é ofendida na sua honra e procura liberar-se de uma maternidade que é, para ela, profundamente odiosa, fruto de uma situação torpe e, em si mesmo, violenta. Mas isso não restou esclarecido no presente caso.
Tirante o fato de ser uma gestação imprevista e indesejada para a sedizente vítima, a interrupção da gravidez não se justifica de forma alguma, pois o aborto é, em si mesmo, um fato dramático e implica condenar à morte quem não teve culpa de ser gerado, e cujos direitos merecem a especial proteção do Estado.
Por entender assim, penso que a autorização para o aborto traria para a recorrente danos psicológicos irreversíveis, além de constituir verdadeira e extrema violência a um ser em desenvolvimento e que, lamentavelmente, já está a sentir a marca da rejeição materna.
Destaco, ainda, que não se pode ignorar o direito do nascituro à vida, conforme estabelece o art. 227 da Constituição Federal. Aliás, o fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem, constitui direito natural inalienável de todo o ser humano e é, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber.
Lembro, por fim, que o filho, ainda que esteja no ventre da mãe e dela se nutra, tem uma vida própria, não sendo um objeto sobre o qual possa ela dispor livremente. Nem mesmo a possível violência que possa ter sofrido a sedizente vítima justifica essa nova violência que ela pretende praticar contra o feto, pois o atentado à vida é incomensuravelmente mais grave que o atentado que possa ter sofrido à sua liberdade sexual” (Agravo de Instrumento 70081490799).