Entre as inovações promovidas pelo denominado “Pacote Anticrime”, destacamos neste estudo a figura do “agente policial disfarçado”, com previsão no artigo 33, §1º, inciso IV, da Lei de Drogas e nos artigos 17, §2º e 18, Parágrafo Único, do Estatuto do Desarmamento.
Os dispositivos em questão são praticamente idênticos e apresentam uma redação interessante e inovadora, sugerindo, assim, que poderíamos estar diante de um tipo penal incriminador. Vejamos, pois, a redação expressa no novo §2º, do artigo 17, do Estatuto do Desarmamento:
Art.17, §2º. Incorre na mesma pena quem vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente
Note-se que o texto legal descreve duas condutas (“vender” e “entregar”), relacionando-as com arma de fogo, acessório e munição e faz menção às penas previstas no caput do artigo (que criminaliza o comércio ilegal de arma de fogo), técnica normalmente utilizada para ilustrar figuras penais equiparadas, passando, assim, a falsa impressão de que se trata de um tipo penal incriminador.
O mesmo ocorre no artigo 33, §1º, IV, na Lei de Drogas, onde se estabelece que “nas mesmas penas incorre quem: vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente”.
Destaque-se, todavia, que, na verdade, estamos diante de uma norma penal de natureza explicativa, onde o legislador acata um posicionamento jurisprudencial relacionado ao denominado “flagrante preparado”, esclarecendo que nas circunstâncias descritas no dispositivo não há qualquer ilegalidade na ação do agente policial disfarçado e também não se pode cogitar a atipicidade dos fatos, uma vez que o suspeito responderá por outras condutas previstas no caput do artigo 17, do Estatuto ou 33, da Lei de Drogas.
Para que possamos compreender essa inovação legislativa, torna-se imprescindível uma análise, ainda que perfunctória, do chamado “flagrante provocado”. Primeiramente, chamamos a atenção do leitor para o fato de que o flagrante preparado (ou provocado) não se confunde com o “flagrante esperado”, embora essas duas modalidades de flagrante contem com a intervenção de terceiros antes da prática das condutas punidas. Entretanto, de acordo com a jurisprudência, somente no segundo caso a prisão é considerada legal, sendo o flagrante preparado ilegal.
Nesse diapasão, é o enunciado da Súmula 145 do STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Perceba-se que o flagrante preparado (ou provocado) conta com a intervenção de um terceiro que provoca a prática do crime pelo agente, sendo que, do mesmo modo, são tomadas providências que impossibilitam a consumação do delito. Trata-se, no caso, de um típico exemplo de crime impossível (art.17, do CP), também chamado de delito putativo por obra do agente provocador.
Já no flagrante esperado, como ensina Eugênio PacelliPACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. p.426,
não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas na informação de sua existência. Ocorreria, por exemplo, quando alguém, que por qualquer motivo tivesse conhecimento da prática futura de um crime, transmitisse tal informação às autoridades policiais, que então se deslocariam para o local da infração, postando-se de prontidão para evitar a sua consumação ou exaurimento. Nesse caso, a ação policial seria de espera, e não de provocação, donde a diferença de ser esse um flagrante válido, ao contrário daquele outro.
Fixadas essas premissas, nesse ponto é preciso focar nossa atenção no “flagrante provocado”, que envolve exatamente as normas descritas nos dispositivos acima mencionados. Isso porque, percebam, o agente policial disfarçado se passa por um comprador de drogas ou armas de fogo, provocando, assim, o suspeito a lhe “vender” ou lhe “entregar” os objetos materiais em questão.
Note-se que a ação provocativa do agente policial disfarçado se limita às condutas finais de “venda” ou “entrega”, o que descaracteriza os crimes, exclusivamente, em relação a esses núcleos dos tipos penais (entrapment), mas não afasta a ilegalidade das condutas praticadas anteriormente, como as de “ter em depósito”, “transportar” ou “ocultar”, por exemplo. Daí por que o texto estabelece que em tais hipóteses o suspeito estará sujeito às mesmas penas do caput, desde que o conjunto probatório indique “conduta criminal preexistente”. Conforme já consignado, esse cenário, agora expressamente regulamentado em lei, traduz posicionamento pacificado na jurisprudência, senão vejamos:
TRÁFICO INTERESTADUAL DE DROGAS. FLAGRANTE PREPARADO. INEXISTÊNCIA. EIVA INEXISTENTE.1. No flagrante preparado, a polícia provoca o agente a praticar o delito e, ao mesmo tempo, impede a sua consumação, cuidando-se, assim, de crime impossível, ao passo que no flagrante forjado a conduta do agente é criada pela polícia, tratando-se de fato atípico. 2. No caso dos autos, embora uma policial tenha simulado ser a corré que entregaria para os pacientes a substância entorpecente transportada no ônibus e a transação não haver se consumado em razão da prisão em flagrante dos acusados, o certo é que, antes mesmo do referido fato, o crime de tráfico já havia se consumado em razão de os denunciados haverem trazido consigo e transportado a droga entre dois Estados da Federação, conduta que, a toda evidência não foi instigada ou induzida pelos agentes, o que afasta a mácula suscitada na impetração. Precedentes do STJ e do STF. (STJ, HC 340.615/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 04/05/2018)
Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Art. 12, caput da Lei nº 6.368/76. Flagrante preparado. Não ocorrência. Paciente que, no momento dos fatos, se encontrava em local considerado ponto de tráfico, tendo ido buscar a droga após a solicitação de compra. A ser verídica a versão dos policiais, o paciente, após o pedido, teria ido buscar a droga em local onde a estava depositando, conduta que incidiria no art. 12, caput da Lei nº 6.368/76, na modalidade “ter em depósito”, como capitulado na denúncia, inexistindo o flagrante preparado porque, a exemplo do entendimento esposado no HC nº 72.824/SP (Min. Moreira Alves), o crime, de caráter permanente, já se teria consumado. (STF, 81.970/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j.28.06.2002)
Resta evidente, portanto, que a inovação legislativa em estudo não acarreta qualquer mudança na compreensão do “flagrante preparado” e sobre a sua ilegalidade, mantendo-se o entendimento de que a conduta provocada pelo agente policial disfarçado constitui fato atípico em decorrência da norma prevista no artigo 17, do Código Penal, que trata do “crime impossível”.
Contudo, se nesses casos os elementos probatórios demonstrarem a prática de outra conduta típica, torna-se plenamente possível a responsabilização do suspeito, inclusive com sua prisão em flagrante. Justamente por isso, pensamos que a ação do policial disfarçado também se destaca como uma “técnica especial de investigação”, servindo para reforçar a materialidade dos crimes de comércio ilegal de arma de fogo, tráfico de armas ou de drogas.
(…) pode-se esboçar a definição de agente disfarçado como aquele que, ocultando sua real identidade, posiciona-se com aparência de um cidadão comum (não chega a infiltrar-se no grupo criminoso) e, partir disso, coleta elementos que indiquem a conduta criminosa preexistente do sujeito ativo. O agente disfarçado ora em estudo não se insere no seio do ambiente criminoso e tampouco macula a voluntariedade na conduta delitiva do autor dos fatos.
Concordamos parcialmente com os autores acima mencionados. De fato, a ação do agente policial disfarçado não macula a voluntariedade da conduta delitiva do investigado, entretanto, não nos parece correto dizer que essa técnica investigativa tenha por finalidade coletar elementos que indiquem a conduta criminosa preexistente. Na verdade, a ação só se justifica nas hipóteses em que já houver elementos que indiquem o envolvimento do investigado com a infração penal.
A adoção desta técnica, portanto, pressupõe a existência de elementos probatórios de crime anterior, sendo que a intervenção do agente disfarçado apenas reforça a materialidade do crime investigado, constituindo, por assim dizer, “a cereja do bolo”. Do contrário, em se entendendo que o agente disfarçado busca coletar dados de infração preexistente, estaríamos admitindo a denominada “fishing expedition”, procedimento em que se almeja verificar, sem qualquer lastro probatório e de maneira aleatória, o envolvimento de uma pessoa com o delito.
De maneira ilustrativaImportante consignar que no exemplo abordado a polícia poderia se valer, ademais, de “ação controlada”, outra técnica investigativa prevista na Lei 12.850/13 e que estabelece a possibilidade de se postergar a intervenção policial para o momento mais eficaz à formação de provas. No caso, o investigado poderia não ser preso no momento da entrega das armas, sendo monitorado até retornar para o local em que mantém em depósito os objetos materiais do crime. , imagine que foi instaurado inquérito policial para investigar um suspeito de realizar o comércio ilegal de armas de fogo, acessório e munição. Por meio de interceptação telefônica, fica comprovado que o investigado se dedica ao exercício dessa atividade comercial. No intuito de reforçar a materialidade do crime, um policial disfarçado procura o suspeito e demonstra interesse na aquisição de 5 pistolas calibre .45, sendo que durante a transação o comerciante deixa claro que tem diversas opções de armas e munições em estoque. O valor estipulado para a venda é pago e é marcado um local para a entrega do armamento, oportunidade em que o suspeito é preso em flagrante.
No exemplo acima a técnica de investigação adotada serviu para provocar a “venda” e a “entrega” das armas de fogo. Com efeito, não se pode cogitar o crime do artigo 17, nos núcleos “vender” ou “entregar”, mas considerando que a investigação já indicava a prática de conduta criminal anterior (“ter em depósito”), é perfeitamente possível a sua responsabilização penal pelo crime de comércio ilegal de arma de fogo.
Em sentido contrário, LEITÃO JUNIORLEITÃO JUNIOR, Joaquim. O agente policial disfarçado na Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Disponível: https://juspol.com.br/o-agente-policial-disfarcado-na-lei-no-13-964-2019-lei-do-pacote-anticrime/ . Acesso em 30.04.2020 sustenta que as inovações legislativas objeto deste estudo caracterizam crime, senão vejamos:
Defende-se estar diante de uma nova norma penal incriminadora autônoma, já que o legislador ordinário seguindo o mandato de criminalização da Constituição Federal (referente ao tráfico de drogas) criminaliza como infração penal a conduta daquele agente criminoso que vende ou entrega drogas, matéria-prima, insumo ou produto químico ao agente policial disfarçado. Na mesma esteira, legislador ordinário passa a criminalizar o agente criminoso que vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição ao agente policial disfarçado. Em ambas as situações, em termos práticos, o legislador passa a propiciar ao mesmo tempo, no campo da intervenção policial (ação policial), a prisão flagrancial do agente criminoso nestas situações sem eivar de nulidade a prisão em flagrante delito, com relaxamento da prisão.
No mesmo diapasão se posicionam Ó SOUSA, CUNHA, ASSIS e LINSÓ SOUSA, Renee do. CUNHA, Rogério Sanches. ASSIS, Caroline de. LINS, Silva Homes. op. cit.:
(…) verifica-se que o propósito é assegurar a autônoma criminalização da conduta daquele que realiza atos de tráfico de armas, drogas ou de matéria prima com um agente policial disfarçado e assim aniquilar com o entendimento de que a solicitação pelo agente policial do produto proibido resulta na caracterização de flagrante preparado e crime impossível. Na verdade, ao eleger essa conduta como crime, de maneira excepcional, o legislador rompe com a necessária bilateralidade inerente ao tráfico, dotando de desvalor penal suficiente a prática de atos unilaterais destinados a dispersão de determinados produtos perigosos e relacionados ao tráfico (de armas, droga e matéria prima). Em outras palavras, a incriminação resulta da antecipação do comportamento delitivo, fruto de um fracionamento normativo apto a caracterizar suficientemente um novo injusto penal.
Data máxima vênia, mas, insistimos, não nos parece correta essas conclusões. Ora, é cediço que um tipo penal incriminador deve descrever as condutas punidas no seu preceito primário e impor uma pena no seu preceito secundário. Note-se que, diferentemente do escólio de LEITÃO JUNIOR, os dispositivos em questão não criminalizam as condutas de “vender” ou “entregar” drogas, por exemplo, pelo contrário. O texto evidencia que o sujeito só será responsabilizado penalmente se restar comprovada uma conduta criminal preexistente, vale dizer, anterior ao ato de “vender” ou “entregar”.
Do mesmo modo, não nos parece que a partir dessa inovação o legislador tenha propiciado a intervenção policial com a prisão em flagrante do suspeito, haja vista que, conforme demonstrado, no cenário retratado pelas normas já se entendia possível a prisão em flagrante, mas pelas condutas praticadas antes daquelas que foram provocadas pelo policial disfarçado. Não houve, portanto, qualquer alteração no tratamento do tema, mas apenas uma explicitação legal de um entendimento já consolidado na doutrina e na jurisprudência, o que, evidentemente, traz uma maior segurança jurídica na adoção dessa técnica.
Discorrendo sobre o tema antes das alterações promovidas pelo “Pacote Anticrime”, MENDONÇAMENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2011. p. 167. já questionava a ilegalidade do “flagrante provocado”, se valendo, inclusive, de jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional Espanhol, no sentido de que somente há crime impossível quando se incite a cometer o delito a quem não tinha previamente tal propósito. Nesse caso, de fato, a verdadeira causa da atividade criminosa já nasce viciada pelo agente provocador. E conclui:
Se, por sua vez, o investigado já possuía prévio propósito de delinquir, mesmo sem a interferência do agente infiltrado, não há que se falar em flagrante provocado. (…) Para provar que houve provocação e que o ato é inválido (entrapment), o acusado deve demonstrar que a polícia “plantou a sugestão” do crime na mente do réu. Se o reú tiver uma predisposição a cometer o crime, a alegação não será considerada”.
Em reforço aos nossos argumentos no sentido de que os dispositivos em estudo não constituem “normas penais incriminadoras”, lembramos que se assim fosse, estaríamos diante de uma “novatio legis incriminadora”, com incidência apenas a partir da Lei 13.964/19. Com efeito, seríamos obrigados a admitir que anteriormente não haveria crime nessas hipóteses e todas as prisões, bem como as respectivas condenações teriam sido pautadas em fatos atípicosA reflexão que se apresenta nesse ponto é fruto de debate sobre o tema com nosso amigo e coautor em diversos trabalhos científicos, Eduardo Cabette. .
Dizendo de outro modo, a inovação promovida pelo “Pacote Anticrime” não poderia retroagir para o fim de incriminar, mas, de forma inusitada e – por que não? – quase cômica, retroagiria para beneficiar réus por fatos ocorridos antes de sua vigência. Na verdade, não seria uma retroatividade propriamente dita, mas uma espécie inédita de efeito retroativo reflexo ou “por arrastamento”. Tudo isso em decorrência dessa confusão entre norma penal incriminadora e um posicionamento doutrinário-jurisprudencial já consolidado e agora positivado em lei, tratando-se, em nosso sentir, de hipótese de continuidade típico-normativa.
Por fim, cabe registrar que essa nova figura do “agente policial disfarçado” não se confunde com a “infiltração de agentes”, prevista na Lei 12.850/13, que trata das Organizações Criminosas. Embora estejamos diante de técnicas especiais de investigação criminal, a “infiltração de agentes”, nos termos da legislação de regência, exige ordem judicial para ser implementada, observando-se, ademais, outras formalidades, como a necessidade de um relatório das diligências. A nova figura do agente policial disfarçado, por outro lado, dispensa autorização judicial ou qualquer outra formalidade, podendo ser adotada de forma discricionária pelo responsável pela investigação.
Parece-nos, todavia, que esse método de investigação deva ser conjugado, sempre que possível, com a ação controlada, registrando-se todas as condutas do criminoso, desde sua saída do local em que mantém o depósito (momento em que já poderia ocorrer a intervenção policial), a entrega dos objetos aos policiais disfarçados e, finalmente, o seu retorno, oportunidade em que seria preso em flagrante.
Conclui-se, assim, que, mesmo de modo um tanto atrapalhado, o legislador trouxe mais segurança jurídica para o agente policial disfarçado. Lamenta-se apenas que tal inovação não tenha sido incluída diretamente na Lei 12.850/13, como outro meio de obtenção de prova, o que certamente evitaria essa celeuma em torno da natureza jurídica da norma.