Muitos debates estão surgindo novamente a respeito da nova regra referente ao Acordo de Não Persecução Penal – ANPP, introduzido ao ordenamento jurídico no art. 28-A, CPP, pela Lei nº 13.964/2019, notadamente quanto à sua aplicabilidade (ou não) de forma retroativa.
Uma premissa relevante, aos que eventualmente não conhecem nossas posições: somos absolutamente favoráveis a todos os tipos de regras que venham estimular a redução das contendas penais e ampliar o rol de possibilidades de acordos jurídico-penais entre as partes, maximizando a aplicação de penas ou ajustes que não impliquem encarceramento ou penas dessa natureza.
Entretanto, precisamos deixar claro que nossas vontades não podem se sobrepor a uma interpretação que se tenha por mais correta ao sistema jurídico, muito menos ir para além do que previsto em lei (sim, sabemos bem a existência da possibilidade de o Poder Judiciário conferir interpretações para o devido ajuste das normas legais ao ordenamento constitucional).
É exatamente disso que trataremos aqui.
O presente texto é mais detalhado que outro que já publicamoshttps://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/nao-cabe-acordo-de-nao-persecucao-em-acoes-penais-11062020 , e qui procuraremos demonstrar o que poucos têm parado para refletir juridicamente e analisado com um mínimo de acuidade e isenção técnica, especialmente diante de precedentes da Suprema Corte brasileira – todos analisados em detalhe aqui – , bem assim da análise sistemática das normas jurídicas.
Admitir a aplicação do acordo de não persecução penal em ações penais em andamento, sob o (fácil) escudo geral de que consistiria providência “mais benéfica ao infrator”, configura uma criação com base isolada em um princípio apenas (da retroatividade), em desacordo também com a interpretação que entendemos correta e, segundo vemos, já conferida pelo STF em situações análogas, como foi em face de debates travados com a entrada em vigor da Lei nº 9.099/95.
Mais que isso: se a questão se limitasse a sustentar que a regra seria (só) penalmente mais benéfica, implicaria, necessariamente, que se abrisse a possibilidade de acordo aos casos com sentença já transitada em julgado, pois traria em seu bojo a possibilidade de ajuste de uma pena mais favorável à que prevista em abstrato ou então aplicada pelo juízo criminal. Não esqueçamos que toda regra penal mais benéfica deve retroagir inclusive sobre casos já transitados em julgado. Assim, nessa linha de argumentação, ou ela retroage para todos os casos (absolutamente todos), ou ela é limitada por algum fator objetivo, que, no caso, tem natureza processual penal, que é o recebimento da denúncia.
Contrariando frontalmente a opção do legislador (de verdadeira política criminal), a “escolha” de outros marcos de incidência do ANPP como até o início da instrução, até a sentença, até a condenação em segundo grau, até o trânsito em julgado ou qualquer outro momento decorreria de mero decisionismo sem qualquer racionalidade à luz do ordenamento jurídico vigente.
As disposições principais do novo instituto de não persecução penal precisam ser trazidas a lume diante do caso posto:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
[…] § 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Uma premissa parece-nos clara: o acordo de não persecução penal foi criado para as situações (futuras, a partir da vigência da lei) em que não tenham sido ainda recebidas as denúncias.
Induvidosamente, o instituto (de natureza processual penal) pode (em tese) ser mais benéfico em algumas situações (a depender de interesse sobretudo do – já – réu, que está sendo processado).
Cremos que não há se invocar eventual hipótese de “retroatividade mais benéfica”. Não se trata de regra penal, mas procedimental, sendo bem diversa da situação da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), em que há ajuste para a suspensão do processo (embora não se admita “culpa” para tais fins de suspensão, algo que deverá ser feito para fins do acordo de não persecução penal – o pretenso beneficiário precisa confessar a prática da infração penal).
Pedimos autorização para reproduzir o que sustentamos, sinteticamente, na companhia de Eugênio PacelliComentários ao CPP e sua jurisprudência, 12ª ed, 2020, p. 116. a respeito do tema:
[…] A própria natureza do instituto parece sugerir que a proposta deverá ser feita na fase pré-processual, tanto pelo texto da lei (“Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado…”) quanto pela consequência de seu descumprimento ou não homologação (possibilidade de oferecimento de denúncia). Contudo, a lei diz que cabe ao juiz das garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação (art. 3º-B, XVII).
Ora, se é certo que as colaborações premiadas podem ser formalizadas ao longo do processo (art. 4º, § 5º da Lei nº 12.850/13), o mesmo não pode ser dito quanto ao acordo de não persecução penal, que deveria ser proposto em momento anterior. A única possibilidade que conseguimos visualizar de esta questão surgir durante o processo é a de o Ministério Público oferecer diretamente a denúncia sem ter proposto o acordo de não persecução, e após o recebimento da exordial, o réu se insurgir contra a ausência de possibilidade de formalizar o acordo.
Assim, concordando o juiz com o pleito, o ideal seria suspender o processo até a questão ser solucionada (com remessa ao órgão superior interno do parquet em caso de discordância, nos termos do § 14 do art. 28-A do Código de Processo Penal).
Contrariando frontalmente a opção do legislador (de verdadeira política criminal), a “escolha” de outros marcos de incidência do ANPP como até o início da instrução, até a sentença, até a condenação em segundo grau, até o trânsito em julgado ou qualquer outro momento decorreria de mero decisionismo sem qualquer racionalidade à luz do ordenamento jurídico vigente.
Assim, é preciso bem separar as coisas: fatos cometidos após a vigência da Lei nº 13.964/2019; fatos cometidos anteriormente, mas ainda não denunciados; e fatos cometidos anteriormente e com denúncias já recebidas.
Retroatividade penal é sobre o fato penal! Assim, resta induvidosa a (induvidosa) retroatividade do ANPP sobre fatos ocorridos anteriormente à vigência da Lei nº 13.964/2019 (o art. 5º, XL, da CF é claro: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; art. 2º, parágrafo único, Código Penal, idem: lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado).
Não se pode esquecer que a legislação processual penal prevê (também) o princípio do tempus regit actum (a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior), que precisa a devida contextualização e compatibilização com as regras eventualmente penais previstas em mesmo dispositivo eventualmente existente (híbrido), como é o caso do ANPP: o art. 28-A do CPP é, de forma indiscutível, de caráter híbrido. A situação do ANPP definitivamente não é de regra exclusivamente processual, que faria com que, em caso de colisão com regra de cunho penal mais benéfica, preponderasse a primeira premissa.
É verdade que a aplicabilidade das regras atinentes ao juiz de garantias encontra-se suspensa provisoriamente por decisão liminar em ADI perante o STF, mas em nada altera as premissas que estão claras na lei: o legislador previu o ANPP (e é até intuitivo que o seja) exclusivamente para os casos que não sejam hipótese de arquivamento e preencham os demais requisitos legais. Noutras palavras (e com a excepcionalidade que destacamos antes): recebida a denúncia, inviável, por questão temporal, falar-se em possibilidade de ANPP.
Recordemos ainda que o legislador estava analisando a hipótese também de aprovação do, assim denominado, “acordo de não continuidade de persecução penal” (independentemente da natureza ou nomenclatura que se pudesse conferir a esse acordo), que seria possível para as hipóteses (exclusivas) entre o recebimento da denúncia (aqui tratado) e o início da instrução processual: “Após o recebimento da denúncia ou da queixa e até o início da instrução, o Ministério Público ou o querelante e o acusado, assistido por seu defensor, poderão requerer mediante acordo penal a aplicação imediata das penas”.
Efetivamente, no documento datado de 19.2.2019 (vide tramitação eletrônica do projeto de lei), da lavra do Senhor Ministro da Justiça, extrai-se a justificativa da proposta de inserção do art. 395-A: “aumenta as hipóteses e disciplina a prática de acordos que poderão ser requeridos pelo Ministério Público ou pelo querelante e o acusado, assistido por seu defensor. A situação aqui é diferente da justificada para o art. 28-A., porque pressupõe a existência de denúncia já recebida. No mérito, valem os argumentos lá mencionados, ressaltando-se que, homologada a concordância, a pena será aplicada de pronto”.
O precedente originário citado no acórdão atacado invocou interpretações conferidas quando da vigência da Lei nº 9.099/95 (suspensão e transação processuais), embora tenha citado apenas a “ementa”.
De antemão, fácil visualizar que o ANPP diverge substancialmente da suspensão processual prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95: mesmo que refira que, ao oferecer a denúncia, o Ministério Público poderá propor a suspensão do processo, resta indubitável que a norma pressupõe para, sua aplicação, que haja processo instaurado (tanto que a regra fala: “recebendo a denúncia, poderá suspender o processo”). Por isso podia ser aplicado retroativamente aos casos com denúncia já recebida quando entrou em vigor a Lei nº 9.099/95.
A transação penal (art. 76), de outro lado, pressupõe que não exista processo. Ou seja, não há nem oferecimento e recebimento de denúncia, o juiz aplica desde logo as penas restritivas de direitos ou multa. Tanto é assim que, se não cumpridas as condições no prazo estipulado, pode ser proposta denúncia, para o devido processamento criminal.
Observe-se que a redação da regra do ANPP encontra uma similitude incrível com a da transação penal (art. 76, Lei nº 9.099/95):
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: […]
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
O argumento utilizado – inclusive no acórdão paradigma reportado pelo acórdão ora impugnado – é que, a partir do julgamento plenário na Questão de Ordem no Inquérito 1.055, em 26.4.1996, o STF teria decidido que as regras da Lei nº 9.099/95 seriam (todas) retroativas por serem mais benéficas. Logo o mesmo deveria ser feito com o ANPP.
A ementa diz o seguinte (e pode induzir realmente a tais interpretações pela leitura exclusiva dela):
[…] EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. NORMA PENAL BENÉFICA. APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/95 AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES. NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. – A Lei n. 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, subordinou a perseguibilidade estatal dos delitos de lesões corporais leves (e dos crimes de lesões culposas, também) ao oferecimento de representação pelo ofendido ou por seu representante legal (art. 88), condicionando, desse modo, a iniciativa oficial do Ministério Público a delação postulatória da vítima, mesmo naqueles procedimentos penais instaurados em momento anterior ao da vigência do diploma legislativo em questão (art. 91). – A lei nova, que transforma a ação pública incondicionada em ação penal condicionada a representação do ofendido, gera situação de inquestionável benefício em favor do réu, pois impede, quando ausente a delação postulatória da vítima, tanto a instauração da persecutio criminis in judicio quanto o prosseguimento da ação penal anteriormente ajuizada. Doutrina.
LEI N. 9.099/95. CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS. NORMAS BENÉFICAS. RETROATIVIDADE VIRTUAL. Os processos técnicos de despenalização abrangem, no plano do direito positivo, tanto as medidas que permitem afastar a própria incidência da sanção penal quanto aquelas que, inspiradas no postulado da mínima intervenção penal, tem por objetivo evitar que a pena seja aplicada, como ocorre na hipótese de conversão da ação pública incondicionada em ação penal dependente de representação do ofendido (Lei n. 9.099/95, arts. 88 e 91). – A Lei n. 9.099/95, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal. Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva às premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89). As prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata.
PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS (INQUÉRITOS E AÇÕES PENAIS) INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E DE LESÕES CULPOSAS – APLICABILIDADE DA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91). – A exigência legal de representação do ofendido nas hipóteses de crimes de lesões corporais leves e de lesões culposas reveste-se de caráter penalmente benéfico e torna consequentemente extensíveis aos procedimentos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal os preceitos inscritos nos arts. 88 e 91 da Lei n. 9.099/95. O âmbito de incidência das normas legais em referência – que consagram inequívoco programa estatal de despenalização, compatível com os fundamentos ético-jurídicos que informam os postulados do Direito penal mínimo, subjacentes a Lei n. 9.099/95 – ultrapassa os limites formais e orgânicos dos Juizados Especiais Criminais, projetando-se sobre procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários ou tribunais, eis que a ausência de representação do ofendido qualifica-se como causa extintiva da punibilidade, com consequente reflexo sobre a pretensão punitiva do Estado.
Para além de uma “interpretação da ementa”, o que disse o STF nesse julgado?
A primeira questão que fica bem clara é que estavam discutindo, primordialmente, sobre a necessidade (ou não) de representação do ofendido em crimes de lesões corporais em razão da norma mais benéfica que foi instituída pelo art. 91 da Lei nº 9.099/95 (Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência).
A segunda: a jurisprudência “invocada” por alguns para justificar a aplicação retroativa de todos dispositivos mais benéficos basicamente se faz sobre parte do julgado, que está na segunda parte da ementa.
A terceira: embora parte final da ementa fale em inquéritos e ações penais, precisamos ver o que efetivamente constou da fundamentação do julgado e sua extensão efetiva.
E a quarta: o caso em que decidido o tema pelo plenário não era ação penal, mas um inquérito (ou seja, não havia processo). Então a discussão era sobre a exigibilidade (ou não) da condição que passou a existir (a representação) para os inquéritos em andamento. E corretamente o STF disse que seria exigível, pois não recebida ainda a denúncia.
O leading case do STF na Questão de Ordem no Inquérito nº 1.055 tratava de uma investigação criminal para apurar a prática do delito de lesões corporais previsto no art. 129, caput, CP, fato ocorrido no dia 19.5.1993 (aproximadamente 3 anos antes da decisão). Discutia-se, primordialmente, se, pela nova regra do art. 91 da Lei nº 9.099/95, deveria subordinar-se a perseguibilidade das infrações em questão (até então de ação penal pública) à prévia representação da vítima. O tema foi submetido ao plenário (por isso em questão de ordem) exatamente com a finalidade (única) de definir se os arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam aos casos originários do STF (porque se tratava de competência penal originária, sobre o que nada falava a nova lei, e estavam diante de inquérito em trâmite perante o STF).
No caso, o relator pontuou que a representação da vítima – até então inexigível para essa modalidade infracional – passou a constituir uma delatio criminis postulatória, para que, eventualmente, fosse instaurada uma ação penal. Assim, disse o relator, o “ato de delação postulatória tornou-se indispensável ao válido ajuizamento da própria ação penal e, também, à instauração do procedimento de investigação criminal”. Assim, complementou, “tratando-se de persecutio criminis em sua fase pré-processual, o respectivo inquérito – nos crimes em que a ação pública depender de representação – não poderá, sem esta, ser iniciado, consoante prescreve o ordenamento positivo. […] De outro lado, e com maior razão, o próprio ajuizamento da ação penal, pelo Ministério Público condicionar-se-á à formalização, pelo ofendido, em tempo oportuno, do ato necessário de representação” (grifamos para enfatizar que se tratava de inquérito, em fase pré-processual).
Na sequência reconheceu que esses institutos seriam aplicáveis não apenas em primeiro grau, mas a todas e eventuais questões que envolvessem prerrogativa de foro.
Assentou que a Lei nº 9.099/95 criou instrumentos para viabilizar processos de despenalização (não se tratava de descriminalização), abrindo espaço para consenso.
De forma genérica argumentativa, disse (e com razão), reportando-se a doutrina, que “as premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95 confere especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89), cabendo enfatizar, quanto a este instituto, que ele, na realidade, equivale a um verdadeiro nolo contendere”.
Não olvidando que estava resolvendo uma questão em que não havia ação penal, referiu que “os institutos em questão – além de derivarem de típicas normas de caráter híbrido, pois revestem-se de projeção eficacial tanto sobre o plano formal, quanto sobre a esfera estritamente penal-material, gerando, quanto a esta, consequências jurídicas que extinguem a própria punibilidade do agente […]” Assim, “as prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto à sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe à lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata”.
Dentro do limite da discussão posta (exigir-se ou não representação do ofendido e se incidia sobre casos com prerrogativa de foro, e não sobre a aplicabilidade da transação penal ou da suspensão processual), concluiu que, “independentemente do órgão judiciário ou da instância jurisdicional perante os quais tenham curso ou hajam sido instaurados os procedimentos penais que se lhes aplicam, de imediato as normas materiais de conteúdo penalmente benéfico, como aquelas consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95, concernentes à necessidade de representação do ofendido nos delitos de lesões corporais leves ou de lesões corporais culposas”.
Veja-se que, no excerto acima, não se fala em ações penais, mas em procedimentos penais, que são coisas bem diversas (exatamente porque ali se tratava de um procedimento de investigação penal, não de ação penal). Também fala em normas de cunho estritamente material. Tanto é assim que, na sequência, novamente referiu que a “possibilidade de estender os preceitos em causa a procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários […] decorre […] do fato de que as regras consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 qualificam-se como prescrições de natureza penal e de conteúdo material, veiculadoras de uma específica modalidade de despenalização”. Aliás, essa distinção já fizera anteriormente, como se vê na citação do item 4, acima.
A sua conclusão foi no sentido de, unicamente, determinar a suspensão “desse procedimento penal” (veja-se novamente: fala em procedimento penal, o inquérito) “para que se proceda, no caso, nos termos do art. 91 da Lei nº 9.099/95, à intimação de […], vítima do delito de lesões corporais leves […] a fim de que, no prazo de 30 dias, querendo, ofereça, ou não, a necessária representação, sob pena de decadência”.
A partir do que pontuado, o que se verifica que foi efetivamente decidido e quais conclusões nos importam aqui ?
Em nenhum momento o STF assentou, aqui, que as regras do art. 76 e 89 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam às ações penais em andamento, o tema central era outro (da exigibilidade ou não de representação o ofendido em caso que tramitava sem ação penal, era um inquérito, ou, na lítera do julgado, um procedimento processual penal).
O STF expressamente distinguiu hipóteses de procedimento penal (investigação) e ação penal.
Reconheceu-se (corretamente) que, de forma geral, as regras da Lei nº 9.099/95 possuem caráter mais benéfico sob o aspecto penal.
Em nenhum momento, assentou que as regras referentes à transação penal seriam aplicadas de forma retroativa e de forma indistinta.
Outra decisão relevante do STF que merece análise é aquela tomada na ADI nº 1.719 (mérito), de 18.6.2007, cuja ementa tem o seguinte teor:
PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU.
O art. 90 da Lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada.
Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade.
Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição Federal.
Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei.
O art. 90 da Lei nº 9.099/95 refere que “as disposições desta lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já tiver sido iniciada”. Essa é uma regra exclusivamente processual. Mas daí não se infere que o STF teria permitido a incidência dos dispositivos de conteúdo penal, retroativamente, afastando a limitação temporal (processual) do disposto no art. 90.
Analisemos a fundamentação novamente do voto-condutor.
Disse que “é importante observar, contudo, que a Lei 9.099/1995 tem natureza mista: é composta por normas de natureza processual e por normas de conteúdo material de direito penal. Portanto, para a concreta aplicação do princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL da CF/88), não poderia o legislador conferir o mesmo tratamento para todas as normas inseridas na lei dos juizados especiais”.
O voto se reportou ainda ao que decidido no Inquérito nº 1.055-DF, citando (apenas) a segunda parte da sua ementa (antes vista, mas no contexto geral, como demonstramos), dizendo que o Tribunal assentou o entendimento de que “as normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiverem a instrução iniciada”.
Diante de uma regra exclusivamente processual, a decisão tomada foi para o fim de “dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 do caráter intertemporal do dispositivo ora atacado, voto pela confirmação da cautelar, para dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995, de modo a impedir que dele se extraiam conclusões conducentes a negar a aplicabilidade imediatamente e retroativa às normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei”.
Alertamos ainda para o que disse o (então) relator da Medida Cautelar na ADI 1.719, Ministro Moreira Alves, em seu voto proferido em 3.12.1997: “não há dúvida da relevância da fundamentação do pedido de liminar no tocante a que o disposto no artigo 90 da Lei 9.099, de 26.5.95, só se aplica às normas estritamente processuais desse diploma legal, não alcançando as de conteúdo penal, em virtude do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna […]”.
E o Ministro Marco Aurélio, ao acompanhar o deferimento da liminar, bem destacou: “A Lei nº 9.099/95 possui preceitos mistos, que têm carga material e instrumental. O voto do Ministro-Relator já explicita esse aspecto ao referir-se à aplicabilidade do disposto no art. 90 somente quanto às normas estritamente processuais.
Está bem claro que o STF examinou a limitação imposta pelo art. 90 da Lei nº 9.099/95 (norma estritamente processual) em relação às (autônomas) regras exclusivamente penais da Lei nº 9.099/95, excluindo a extensão da decisão (não a aplicando) para os casos de regras híbridas. Isso está hialino (e correto, segundo pensamos).
Portanto, fundamental acentuar que, em nossa compreensão, o que decidido na ADI 1.719 não atingiu a regra que seja híbrida, como aquela do art. 76 da Lei 9.099/1995 (e que guarda similitude clara com o art. 28-A do CPP, ao tratar do ANPP).
Aliás, atente-se que, em recentíssima decisão, reportando-se ao preciso magistério do Professor Rogério Sanches Cunha, o Superior Tribunal de Justiça firmou clara posição de que a representação penal para fins de processamento do crime de estelionato não pode ser aplicada retroativamente aos casos em que já instaurada a ação penal:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME DE ESTELIONATO. PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART. 171 DO CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. DOUTRINA. DOSIMETRIA. PRETENSÃO DE CONVERSÃO DA PENA CORPORAL EM MULTA. ART. 44, §2º, DO CÓDIGO PENAL. DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR. WRIT NÃO CONHECIDO. […] 2. A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, alterou substancialmente a natureza da ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º, do Código Penal), sendo, atualmente, processado mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido, salvo se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de idade ou incapaz.
3. Observa-se que o NOVO COMANDO normativo apresenta CARÁTER HÍBRIDO, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade. Doutrina: Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha – 12. ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 413.
4. Ademais, na hipótese, há manifestação da vítima no sentido de ver o acusado processado, não se exigindo para tal efeito, consoante a jurisprudência desta Corte, formalidade para manifestação do ofendido.
5. Conforme pacífica jurisprudência desta Corte Superior, fixada a pena corporal nos patamares delineados no art. 44, § 2º, do Código Penal, compete ao julgador a escolha do modo de aplicação da benesse legal. Além disso, não é socialmente recomendável a aplicação da multa substitutiva em crimes cujo o tipo penal prevê multa cumulativa com a pena privativa de liberdade. 6. Habeas corpus não conhecido. (Habeas Corpus n. 573.093/SC, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 9.6.2020, publicado no DJ em 12.6.2020)
Embora tratando de outro tema, a ratio é a mesma. Houve claramente uma condição imposta pelo legislador e isso precisa ser respeitado, não podendo ser aplicado de forma retroativa, mormente quando se tratar de regra de caráter híbrido.
Tanto é assim que, em decisão monocrática, o Ministro Félix Fischer, acolhendo o parecer da e. Subprocuradora-Geral da República Elaine de Albuquerque Oliveira Recena, indeferiu pretensão da DPU a aplicabilidade do ANPP assim fundamentando (Petição no Agravo em Recurso Especial nº 1.668.089-SP, decisão publicada dia 29.6.2020):
[…] Não bastasse isso, diviso que, in casu, a denúncia foi recebida em data de 11/11/2014 (fls. 114-115), muita antes, portanto, da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, que foi publicada em 24/12/2019, com entrada em vigor após o lapso temporal de 30 (trinta) dias. A sentença condenatória, por seu turno, foi publicada em 28/11/2017 (fl. 297). Por fim, tem-se que o acórdão que negou provimento ao recurso de apelação criminal foi publicado em data de 10/10/2019 (fl. 373).
Como bem pontuado pelo d. representante ministerial, em sua manifestação:
“[…] resta claro que se mostra incompatível com o propósito do instituto do acordo de não persecução penal (ANPP) a aplicação desse benefício quando já recebida a denúncia e mais ainda quando já encerrada a prestação jurisdicional na instância ordinária, com a condenação do acusado, sendo esse exatamente o caso dos autos, em que o processo já se encontra nesse STJ.
Realmente, no caso dos autos, a denúncia foi recebida 14.11.2014 (fls. 114/115 e-STJ), portanto, muito antes do início da vigência da Lei nº 13.964/2019, com sentença condenatória publicada em 28.11.2017 (fls. 298 e- STJ) e acórdão confirmatório publicado em 10.10.2019 (fls. 373 e-STJ).
A propósito, a título de reforçar o entendimento acima exposto, vale dizer que o Conselho Nacional dos Procuradores- Gerais, por meio de uma Comissão Especial – GNCCRIM, formulou vários enunciados interpretativos da Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019), dos quais o Enunciado nº 20 trata da retroatividade do artigo 28-A da referida Lei, nos seguintes termos:
“Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.” (grifamos).
Assim é que, sob todos os vieses analisados, vê-se que não há como ser acolhido o pedido de sobrestamento e remessa dos autos ao Juízo de primeiro grau para a análise da possibilidade de acordo de não persecução penal – ANPP, na forma da Lei nº 13.964/19, no caso, uma vez que o feito já se encontra em fase recursal, com condenação do ora requerente pelos crimes de dano, lesão corporal e desacato.” (fls. 531-536, grifos no original)
Verifica-se, portanto, que, ao contrário do que alegado pela combativa Defesa, não merece acolhimento o pleito formulado na presente petição, pois, para além de não preenchidos os requisitos legais, extrai-se da manifestação ministerial que o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, manifestando-se pela Comissão Especial denominada GNCCRIM, editou em o enunciado n. 20, que dispõe, verbis: “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.“
Pelo exposto, acolho o parecer ministerial e indefiro a presente petição.”
Assim, e retornando mais objetivamente à decisão anteriormente destacada do STF, o que se decidiu é que dispositivos exclusivamente penais insertos na Lei nº 9.099/95 não poderiam deixar de ser aplicados aos processos já em andamento pela limitação temporal contido na regra estritamente processual (também geral) do art. 90 da mesma lei. Exatamente por isso é que a interpretação foi conforme à Constituição sem redução de texto.
Relevante focar em duas questões:
a) o STF reafirmou a constitucionalidade do disposto no art. 2º do CPP;
b) se fosse inconstitucional a regra híbrida do art. 76, esse tema seria objeto de deliberação (mas foi expressamente excluída, como visto), pois o foco era a limitação temporal (geral) da regra do art. 90 da Lei nº 9.099/95 a todos os processos já em andamento.
Eventualmente pode-se trazer o argumento no sentido de que uma regra mais benéfica (que possa até implicar a extinção da punibilidade) não pode(ria) ser limitada no tempo. Óbvio que pode, e disso tratamos há muito em várias normas, como no Código Penal brasileiro, e nunca se discutiu na mesma linha do que feito quanto ao raciocínio da aplicação das regras do ANPP. Veja-se por exemplo o art. 16 do Código Penal que, na redação da reforma de 1984, prevê que “nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.
Essa é uma regra híbrida. Prevê a possibilidade de redução de pena de um a dois terços, mas condiciona (no tempo e no espaço, portanto uma regra de processo penal) que a reparação do dano se faça até o recebimento da denúncia (mesmo requisito exigido no ANPP para a aplicabilidade da regra penal mais benéfica).
A pergunta é: posso aplicar esse benefício do art. 16 do CP para “além do recebimento da denúncia” ? A resposta é intuitiva: não, pois essa foi a escolha do legislador.
Então é preciso novamente separar bem: regras exclusivamente de direito penal devem sempre retroagir (inclusive para os feitos com trânsito em julgado), de modo que uma regra (geral) de processo penal (como a do art. 90 da Lei nº 9.099/95) não poder(ia) limitar a aplicação dos preceitos (exclusivamente penais previstos pelo legislador) a processos penais em andamento. Já regras híbridas podem ter limitações temporais.
Sem dúvidas, o art. 28-A do CPP, que trata do ANPP, traz em seu bojo norma híbrida: traz benefícios penais, mas condiciona a um evento (absolutamente legal e constitucional): não haver processo.
Há possibilidade de se dizer que violaria a isonomia não aplicar os benefícios legais a quem cometeu o mesmo crime (ou preencheria em tese os requisitos da lei), um antes da nova lei, outro depois.
Um equívoco, respeitosamente: a isonomia deixa de existir se houver o recebimento da denúncia para situações que não são idênticas segundo o constitucional tratamento trazido pelo legislador. A relação processual penal trata de alguém que está sendo processado e outro que não está.
Discrímen haveria, aí sim se, um com denúncia recebida e outro não, tendo ambos cometido crimes anteriormente à nova lei (e teriam, em tese, as mesmas situações e mesmos pressupostos processuais exigidos pela lei) e, em relação a (apenas) um deles não houvesse denúncia e, quanto a outro, já fora recebida, talvez por questões de “agilidade” processual.
Se o legislador aprovasse o acordo de não continuidade da ação penal (que pressuporia processo, com denúncia recebida), também havia um limite temporal: o início da instrução processual (vide acima a referência feita).
O que não se pode é, por interpretações isoladas e sem visão sistemática, pretender aplicação retroativa (exclusivamente) da parte penal quando ela se revela absolutamente incompatível com outra exigência existente na mesma norma (que é igualmente constitucional), a não existência de processo, pois se trata de norma híbrida.
Destacamos não ver problemas em aplicar o art. 89 da Lei nº 9.099/95 retroativamente exatamente porque ele pressupunha a existência de processo, diferentemente da transação, que se identifica com a questão temporal com o acordo de não persecução penal.
Em síntese conclusiva, à luz do entendimento do STF, compatibilizando os comandos legais à Constituição, pode-se concluir claramente que:
– Aos fatos cometidos após a Lei nº 13.964/2019, cabe o ANPP se preenchidos os demais requisitos legais;
– aos fatos cometidos anteriormente, mas sem denúncia recebida, igualmente cabe (retroatividade mais benéfica);
aos fatos cometidos anteriormente (retroatividade) mas com denúncia recebida não cabe ANPP, pois processualmente há um óbice claro e expresso: somente pode ser aplicado desde que não recebida a denúncia, pois o momento que trata a lei processual é o da fase do artigo 28-A, CPP, quando, não sendo o caso de arquivamento do inquérito, estejam reunidas as condições para se evitar a ação penal, mediante acordo com o investigado.
Rememore-se que, como assentado pelo STF ao limitar temporalmente o art. 89 da Lei nº 9.099/95, agregaram-se fundamentos (que se aplicam devidamente ao caso adaptado ao novo marco temporal) que “a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para o qual foi instituído”.
Como dito inicialmente e demonstrado no decorrer do texto, a suspensão do processo foi admitida retroativamente porque pressupunha processo – “suspensão do processo” -, mas com limite temporal da sentença. Na linha do reconhecido pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do HC nº 74.305-6 (Plenário, STF), “no plano processual, o que se tem, indiscutivelmente, é a aplicação imediata da lei nova, mas sem retroceder no tempo para alcançar fases superadas do procedimento em curso […] parece-me possível levar essa possibilidade […] até a sentença. Por quê ? Porque se trata, tipicamente […], de um mecanismo de disposição da ação penal. Ora, o Ministério Público não tem, nem pode ter, disposição sobre uma sentença penal condenatória, mormente quando, para ele, já transitada em julgado”.
O mesmo se dá quanto ao Acordo de Não Persecução Penal: admitir sua incidência para depois da denúncia recebida não tem correspondência lógica ao tempo (não ter denúncia). Se o Ministério Público tinha limitação da suspensão do processo até a sentença (porque não poderia dispor da sentença proferida pelo Juiz), o mesmo se deve reconhecer em relação ao ANPP: se a denúncia foi recebida (pelo juiz competente), o MP não pode dispor desse ato judicial já realizado, querendo fazer, agora, por regra híbrida nova, um acordo que pressupõe não haver processo.
Portanto, sustentar a aplicação retroativa do ANPP a processos com denúncias recebidas, além de contrariar a expressa norma legal, significa não seguir corretamente o entendimento sedimentado pelo STF há muito a respeito desse tipo de regras.
Fazemos uma ressalva final (que respeitamos quem a adota, embora entendamos equivocada); se for aplicado de forma isolada o raciocínio de que a regra do ANPP é unicamente mais benéfica sob o aspecto penal (desvinculando-a da limitação temporal feita pelo legislador), essa retroatividade penal implica que o art. 28-A do CPP deva incidir, necessariamente, sobre todos os processos penais, inclusive com trânsito em julgado.
Não há “meia retroatividade penal” mais benéfica.