No longínquo Enunciado 347 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, aprovado em 13/12/1963, estabeleceu-se que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.”
O verbete foi aprovado em 1963, quando não havia sistema de controle abstrato de constitucionalidade (introduzido pela Emenda Constitucional n. 16, de 26/11/1965), época em que ainda se admitia como “legítima a recusa, por parte de órgãos não jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional”. No precedente que ensejou a confecção da súmula, o RMS 8372/CE, Rel. Min. Pedro Chaves, Tribunal Pleno, julgado em 11/12/1961, DJ 26/04/1962, o Supremo Tribunal Federal considerou que o Tribunal de Contas do Estado do Ceará poderia afastar a aplicação da lei local n. 4.318.
No acórdão do RMS 8.372/CE (11/12/1962), o Supremo Tribunal Federal acentuara que “não há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado.” A Corte admitiu o afastamento da aplicação da lei por parte do Tribunal de Contas e no verbete 347 admitiu que o TC poderia analisar a constitucionalidade das leis.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 151), todavia, esse quadro não mais subsiste hoje, após o advento da Constituição de 1988, que ampliou sobremaneira o âmbito do controle abstrato. O controle por órgão alheio ao Judiciário seria de mais difícil justificativa sob o atual sistema.
Com efeito, a Constituição de 1988 deu nova conformação ao tema. Na atual quadra, o controle de constitucionalidade das leis deve ser realizado precipuamente pelo Poder Judiciário (na forma difusa ou na forma concentrada). O Tribunal de Contas não exerce função jurisdicional e, por isso, não pode realizar o controle de constitucionalidade das leis, nem pode afastar a aplicação da norma no caso concreto.
Acerca do tema, entende Tathiane dos Santos Piscitelli (Constituição Federal Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 706) que “a despeito de o artigo 71 conter uma ampla lista de atribuições para os Tribunais de Contas, nenhuma delas contempla a possibilidade prevista na Súmula 347”. Portanto, segundo ela, “a despeito da súmula, não se afigura razoável que os Tribunais de Contas decidam sobre legalidade ou inconstitucionalidade de norma, sendo esse papel privativo do Poder Judiciário.” No mesmo sentido: LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 287.
Passou-se, portanto, a questionar a eficácia da Súmula 347 na nova ordem constitucional. Tanto que em diversas decisões monocráticas, o Supremo Tribunal Federal já vinha afastando a incidência do enunciado – ver, por exemplo: MS 27.344/DF, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 26/05/2008; MS 27.232/DF, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 14/05/2008; MS 25.986/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 22/06/2006; MS 25.888/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 22/03/2006; MS 26.783/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 09/07/2007 e MS 26.808/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 25/07/2007.
Em 12 de abril de 2021, ao julgar diversos mandados de segurança, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que o Tribunal de Contas da União não pode realizar o controle de constitucionalidade das normas nem pode também afastar a aplicação de determinada lei, conduta que, se implementada, violaria a Súmula Vinculante 10 e o art. 97 da CRFB/88 (aplicados analogicamente).
Com isso, o Supremo determinou que o TCU, na análise de aposentadorias e pensões submetidas à sua apreciação, não pode afastar a incidência do art. 7º, §§ 2º e 3º, da Lei 13.464/2017 que prevê o pagamento do bônus de eficiência e produtividade aos servidores da carreira Tributária e Aduaneira da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho. O Tribunal de Contas negava o pagamento do bônus aos inativos sob o argumento de que a lei que concedia a verba era inconstitucional. A posição adotada pelo TCU era baseava na Súmula 347 do STF.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que não cabe ao Tribunal de Contas, que não tem função jurisdicional, exercer o controle de constitucionalidade nos processos sob sua análise com fundamento nesse enunciado. Para o relator dos mandados de segurança, Min. Alexandre de Moraes, “a subsistência do verbete está comprometida desde a promulgação da Constituição de 1988.” Segundo ele, existe uma limitação constitucional da competência dos Tribunais de Contas. Seu papel estaria restrito ao exercício de atos de verificação, fiscalização e julgamento de contas, não podendo invalidar a legislação ou retirar a eficácia da lei.
Considerou-se, acertadamente, que o TCU é um órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, com competência funcional claramente estabelecida no art. 71 da Constituição Federal que não tem função jurisdicional e, por isso, não pode realizar controle de constitucionalidade das leis, nem afastar sua aplicação nos casos concretos.
Com a posição tomada pelo Plenário do STF, confirma-se o que já vinha sendo defendido pela doutrina e por decisões esparsas do Tribunal: com o advento da CRFB/1988, a Súmula 347 do STF não tem eficácia.
(MS 35.490/DF, MS 35.494/DF, MS 35.498/DF e MS 35.500/DF, Rel. Min. Alexandre de Moras, julgamentos encerrados em 12/04/2021)
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