É possível a chamada colaboração unilateral, entendida como a delação premiada sem a celebração de um instrumento ou termo de acordo?
Aqueles que defendem essa possibilidade se ancoram na caracterização da delação como um direito público subjetivo do acusado. Esse entendimento se apoia em um raciocínio demasiado simplista de que os prêmios decorrem da lei, aspecto que restou sobejamente superado pelas alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 que procedimentalizou, pormenorizadamente, a fase pré e negocial do acordo, inserindo-as como parte importante para a celebração do negócio. A consagração, no texto da Lei, de que a colaboração premiada é um negócio jurídico, implica na obrigatoriedade de ela ser celebrada em meio um ajuste bilateral de cláusulas, condições, prestações e contraprestações recíprocas, todas devidamente autoreferenciadas pelas partes, em um ambiente de negociação claro e transparente, capaz de assegurar-lhe confiança e segurança jurídica. Precisas as colocações de Andrey Borges de Mendonça: “Em consequência, a lógica de um negócio processual não é de um jogo de soma zero, a lógica do ‘ganha-perde’ (win-lose), em que apenas uma das partes ganha exatamente à medida que a outra perde e sucumbe – lógica mais próxima da sistemática do processo litigioso. Busca-se outra lógica, em que as duas partes devem, em suas cedências recíprocas, alcançar um objetivo comum em que as duas partes saíram satisfeitas. Ou seja, a lógica do ‘ganha-ganha’ (win-win), em que as duas partes devem lograr alcançar seus objetivos e acomodar seus interesses por meio do acordo.[1]”.
Além disso, uma colaboração premiada estabelecida sem parâmetros procedimentais, sem um plano negocial capaz de lhe assegurar reciprocidade sinalagmática e principalmente, sem uma análise, pelo órgão de acusação acerca de seu efetivo potencial probatório, pautado pela necessidade de o colaborador apontar os possíveis elementos de corroboração do relato, incorre em equívoco grave. A regra da corroboração (art. 4º, § 16, da Lei), um importante filtro que visa evitar falsas e fabricadas colaborações e a busca desenfreada pelos prêmios legais, é reconhecidamente uma regra de ouro da colaboração premiada que impele o colaborador pela necessidade de apresentar uma outra prova independente (independente evidence of guilt) capaz de confirmar a confiabilidade do relato inicial. Uma declaração que imputa corresponsabilidade à outras pessoas sem elementos mínimos de corroboração é prova zero, um nada jurídico.
Em reforço, anote-se que a consensualidade da colaboração premiada consolidado o entendimento de que:
“Não existe direito líquido e certo a compelir o Ministério Público à celebração do acordo de delação premiada, diante das características desse tipo de acordo e considerando a necessidade de distanciamento que o Estado-juiz deve manter durante o cenário investigado e a fase de negociação entre as partes do cenário investigativo. O acordo de colaboração premiada, além de meio de obtenção de prova, constitui-se em um negócio jurídico processual personalíssimo, cuja conveniência e oportunidade estão submetidos à discricionariedade regrada do Ministério Público e não se submetem ao escrutínio do Estado-juiz. Em outras palavras, trata-se de ato voluntário, insuscetível de imposição judicial”. (STF. 2ª Turma. MS 35693 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 28/5/2019 (Info 942)).
Soma-se a isso tudo a reestruturação do processo penal promovida pela Lei 13.964/2019 que proclamou no novo art. 3º-A do CPP que “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Assim, a colaboração premiada unilateral fere o sistema acusatório porque permite que o juiz se aproxime e negocie com o acusado para obter provas incriminadoras de outros fatos ou pessoas, supostamente desconhecidos na ação penal em tramitação. Essa atuação voluntária evidencia uma indevida concentração das funções acusatória e julgadora, fere a proibição textual dele participar das negociações de uma colaboração (§ 6º do art. 4º da Lei), e é nociva porque enseja uma substituição da atuação probatória do órgão de acusação, afinal, os documentos e informações trazidas pelo colaborador servirão de estratégia para uma investigação a ser encetada pelo Ministério Público. E aqui verificamos uma encruzilhada. Considerando que o órgão de acusação, único dirigente da atuação probatória acusatória, pode não levar em conta essas informações, como pode o juiz premiar um acusado por prestá-las, mesmo sem ter garantias de sua utilidade pública, ou pior, mesmo nos casos em que elas não servirão para nada?
Por tudo isso, entendemos que as reformas promovidas pela Lei 13.964/2019, seja na Lei 12.850/2013, seja no CPP, ensejam a inadequação e revogação da chamada delação premiada unilateral, incompatível com a natureza negocial do instituto e com a dinâmica adversarial e acusatória que se assenta o processual penal brasileiro.
[1] DE MENDONÇA, Andrey Borges. Os benefício possíveis na colaboração premiada. In Colaboração premiada, 2017. São Paulo: RT, p. 62.