Sob a égide da Constituição de 1988 foi publicada a Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992 – Lei de Improbidade Administrativa – voltada a regulamentar o seu art. 37, §4º, que surgiu como importante pilar no combate aos desvios praticados no âmbito dos Poderes do Estado.
Três décadas de vigência da Lei nº 8.429/1992 foram suficientes para o amadurecimento da visão crítica em torno da normativa. Neste período houve farta produção bibliográfica, dedicando-se a aspectos materiais e processuais da legislação. Por outro lado, a jurisprudência também teve tempo para amadurecer seu acatamento interpretativo da Lei.
Muitos questionavam se passados trinta anos da promulgação da Lei de Improbidade Administrativa teria a norma cumprido sua promessa de enfrentar com consistência a corrupção e a má gestão pública.
Carlos Ari Sundfeld e Ricardo Alberto Kanayama entendem que não. Afirmam os autores que a LIA “é boa para gerar manchetes, mas não ajuda à luta consistente contra a corrupção, tampouco à melhoria da gestão pública”[1], necessitando de mudanças que conferissem maior densidade às suas normas, tanto no que diz respeito às infrações, como às sanções.
Dentre as críticas dirigidas à norma legal, tinha-se a impossibilidade de negociação na seara da improbidade administrativa.
A LIA, no seu texto original, expressamente estabelecia, no art. 17, §1º, a impossibilidade de transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade, vedando posturas consensuais.
Antes mesmo que a Lei nº 8.429/1992 atingisse sua plena maturidade, diversos autores já contestavam a impossibilidade absoluta de ajustes nesta esfera.
Carlos Frederico Brito dos Santos[2], comentando o §1º, do art. 17, quando da redação original da lei, afirmou que a medida radical se justificaria caso a improbidade administrativa estivesse restrita a condutas desonestas, contudo a conceituação abrangendo inclusive a hipótese da improbidade por dano culposo ao erário não justificaria a vedação.
No mesmo sentido, Fazzio Júnior[3] defendeu a incidência do princípio da insignificância ao afirmar que nos casos de improbidade administrativa de bagatela, ou seja, de menor repercussão, como violação do princípio da publicidade pela ausência de publicação de um único contrato administrativo (art. 11, IV) ou na situação de lesão culposa ao erário de quantia diminuta (art. 10), poderia o Ministério Público pactuar com o agente público o ressarcimento ou encetar compromisso de ajustamento de conduta aos parâmetros legais em caso de improbidade por violação de princípios.
Havia ainda, aqueles que se reportavam à possibilidade de acordo em matéria de improbidade administrativa, voltado à recomposição do erário, antes ou no curso do processo[4].
Mesmo com a expressa vedação normativa, a evidente evolução da consensualidade como porta de acesso à Justiça, considerada como acesso à ordem jurídica justa, inclusive no âmbito do Direito Sancionador, fez com que o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP trouxesse no art. 1º, §2º, da Resolução nº 179/2017, a possibilidade de compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa.
Toda essa movimentação favorável à adesão da consensualidade na seara da improbidade caminhou para a modificação do cenário legislativo.
Nessa perspectiva, a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada “Pacote Anticrime”, alterou explicitamente o disposto no §1º, do art. 17 da Lei nº 8.429/1992, passando a estabelecer a possibilidade de celebração de acordo de não persecução civil – ANPC.
A Lei nº 13.964/2019 foi bem econômica na sua previsão do ANPC, limitando-se a estabelecer no §1º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92 a possibilidade do acordo, acrescentando ao referido artigo o §10-A, dispondo que “havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias”[5].
Com a substancial alteração da Lei nº 8.429/1992 promovida pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, não só se consolidou a autorização legislativa para acordos no terreno da improbidade administrativa, como também foram trazidos certos parâmetros e requisitos para a sua formalização, constantes do art. 17-B. Saliente-se que a Lei nº 14.230/2021 revogou o art. 17, §1º, porém manteve a redação do seu §10-A, trazida pela Lei nº 13.964/2019.
A normativa em torno do acordo de não persecução civil, instrumento de consensualidade voltado especificamente ao âmbito da improbidade administrativa, atende à antiga expectativa construída a partir do reconhecimento da deficiência estrutural do Poder Judiciário para conferir celeridade às demandas propostas nesta seara e da real possibilidade de atendimento à finalidade normativa pela via consensual. No entanto, é importante salientar que o art. 17-B não responde todas as questões em torno do novel legal.
Persistem questões não respondidas pela lei, tais como: é possível a formalização do ANPC sem previsão de sanções? Todas as sanções poderão ser acordadas? Diante da impossibilidade absoluta de ressarcimento de danos pelo investigado/acusado, remanesce a possibilidade do ajuste? O ANPC obriga a pessoa jurídica lesada que não foi notificada? Quais as medidas de interesse público que podem ser contempladas no acordo? Como se dá a execução do acordo de não persecução civil quando diante da inadimplência?
Essas e tantas outras questões encontram respostas no nosso trabalho intitulado “O Acordo de Não Persecução Civil: negócio jurídico nos planos da existência, validade e eficácia”, tese de Doutorado apresentada no Programa de Doutorado da Universidade Federal da Bahia, que caminha para sua versão comercial.
No entanto, é importante que as normativas editadas pelos Ministérios Público e entes federados atentem para tais questionamentos de forma realista, auxiliando a aplicação do novo instituto, que requer posturas comprometidas com o interesse público, estabelecidas de forma razoável e proporcional, na busca da efetividade.
Por outro lado, a jurisprudência a ser construída em torno do ANPC não pode desconsiderar o instituto como importante porta de acesso à justiça, construída pela via dialogal, a partir de concessões mútuas, que requer maturidade e comprometimento com o cenário fático.
A normativa em torno desse instrumento de consensualidade voltado especificamente ao âmbito da improbidade administrativa, atende à antiga expectativa construída a partir do reconhecimento da deficiência estrutural do Poder Judiciário para conferir celeridade às demandas propostas nesta seara e da real possibilidade de atendimento à finalidade normativa pela via consensual.
[1] SUNDFELD, Carlos Ari, KANAYAMA, Ricardo Alberto. A promessa que a Lei de Improbidade Administrativa não foi capaz de cumprir. Edição Especial da Revista da AGU. Brasília: Escola da AGU, v. 12, n. 02, 2020, p. 414.
[2] DOS SANTOS. Carlos Frederico Brito. Improbidade Administrativa: reflexões sobre a Lei nº8.429/1992. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 255.
[3] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2016. p. 411.
[4] COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Improbidade Administrativa: aspectos materiais e processuais. In: Sampaio, José Adércio Leite; Costa Neto, Nicolao Dino de Castro e; Silva Filho, Nívio Freitas; Anjos Filho, Robério Nunes dos (orgs.). Improbidade Administrativa: 10 anos da Lei nº 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 380.
[5] Deve-se salientar, no entanto, que o Projeto de Lei nº 6.341/2019 trazia na sua redação original o Art. 17-A a ser incorporado à Lei nº 8.429/1992, que trazia o seu conteúdo essencial e demais requisitos de validade e eficácia do ajuste. No entanto, tal dispositivo recebeu o veto presidencial, deixando de constar na redação final da Lei nº 13.964/2019.