Quem comete crime é passível de prisão. O Código Penal descreve mais de duas centenas de condutas consideradas crimes. Outras leis, tão abundantes quanto diversificadas, reproduzem numerosos comportamentos classificados como infrações penais: Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Interceptação Telefônica, Genocídio, Lavagem de Dinheiro, Organizações Criminosas, Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e as Relações de Consumo, Meio Ambiente, Desarmamento, Defesa do Torcedor, Idoso etc. Até no Estatuto do Índio e na lei que trata de organismos geneticamente modificados (OGM) há descrição de fatos puníveis. Em suma, no Código Penal e nas demais leis penais (extravagantes) cabe a própria existência humana.
Qualquer maneira anormal, desviante, inadequada ou imprópria de se comportar, de agir e de viver pode, em tese, ser enquadrada nos tipos/modelos penais de conduta. Por exemplo: urinar em lugar público (ato obsceno), corte forçado do cabelo (lesão corporal), chamar alguém de incompetente (injúriaartigo 129 do CP. Exemplo extraído do Código Penal Comentado. Fuhrer, Maximiliano Roberto Ernesto e Fuhrer, Maximilianus Cláudio Américo Alencar. SP: Malheiros editores, 3ª edição, 2010, pág. 165. ), abate clandestino de gado (infração de medida sanitária preventivaartigo 140 do CP. Idem, pág. 209), soltar balões (crime contra a floraartigo 268 do CP. Idem, pág. 482.), prática habitual de passes espirituais com o intuito de cura (curandeirismoartigo 42 da Lei n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais)), jogo das tampinhasJogo em que três tampinhas são coladas sobre uma mesa ou caixa de papelão e debaixo de uma delas uma bolinha. Movimentadas as tampinhas, tem-se que adivinhar sob qual delas se encontra a bolinha (induzimento à especulaçãoartigo 174 do CP. Idem, pág. 330.). Sequer o descuido e a imprudência escapam desse latente enquadramento – ex.: abandonar animal de carga em via pública (omissão de cautela na guarda ou condução de animais) e motorista que se envolve em acidente com morte, enquanto dirige falando ao celular (praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor).
Em meio à infinidade de infrações penais, contudo, a expressiva maioria das pessoas está presa no Brasil pela prática de poucos e determinados crimes, cuja quantidade é possível contar com os dedos das mãos: latrocínio (roubo seguido de morte), estupro, tráfico de drogas, roubo com emprego de arma, homicídio cometido por certo motivo (v.g. fútil e torpe) e modo (v.g. emprego de veneno, tortura, à traição, de emboscada), entre alguns outros. A quase totalidade dos demais crimes não resulta, via de regra, em prisão.
Na mesma vala comum, pois, encontram-se os que não precisam e os que fazem jus à prisão. O sistema de justiça criminal, incapaz de investigar, processar e julgar todos os crimes, e sempre às voltas com uma demanda incessante e invencível, funciona por amostragem. Há uma massa de pessoas investigadas e indiciadas sem processos; acusados e réus sem sentenças. À espera de delegados de polícia que concluam a apuração das infrações penais e da sua autoria; ao aguardo de membros do Ministério Público que promovam as respectivas ações penais; e na expectativa de juízes que as julguem. Pessoas, enfim, processualmente, reféns das leis e dos responsáveis pela sua aplicação.
Também, vê-se audiências designadas para dali a 3, 4, 5 anos da data da ocorrência do crime; punibilidades extintas antecipadamente pela prescrição (supõe-se qual será a quantidade de pena ao final do processo, e com base nela se declara que decorreu o prazo para aplicá-la), acarretando a inutilidade dos processos; quando não tem lugar essa prescrição em perspectiva (virtual), repudiada pelos tribunais superiores, porque não prevista na lei, mutirões judiciais são realizados para aplicar in concreto a pena, e, apoiada nela, declarar que passou o prazo para punir. De igual forma, extingue-se o processo. Um simulacro de julgamento.
Tem-se, então, um sistema de justiça criminal que deixa os acusados em geral, inclusive o primário, sem qualquer passagem pela polícia, em um estado de indefinição/incerteza que perdura anos. Enquanto para a sociedade eles estão fora do sistema, os investigados sentem-se inseridos nele, sob a constante e espera ansiosa de serem chamados – sabe-se lá, se e quando – para acertar as contas com a Justiça. Muitos permanecem nesse limbo processual até que se possa utilizar o tempo decorrido como uma borracha para apagar os crimes, pela prescrição.
Nessas circunstâncias, em que as reformas das leis penais e processuais penais tardam décadas – quando, nunca chegam -, a Resolução n. 181 do CNMP instituiu o acordo de não-persecução penal. A confissão da prática de crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa, que antes resultava, efetiva ou potencialmente, em provável processo, e possível condenação, agora pode ser objeto de uma solução de compromisso. Um compromisso assumido entre o Ministério Público e o investigado, tendo por fim o mesmo resultado – quiçá, melhor – que se alcançaria pelo processo.
Um caminho que, além de ser mais curto e célere, em razão de prescindir do processo, respeita a autonomia da vontade do próprio investigado. Pelo acordo, baseado na boa-fé e confiança recíprocas, ele pode determinar por si mesmo o que melhor lhe convier, preenchidos os requisitos exigidos pela normaArtigo 18 da Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017. Além disso, evidencia-se menos gravoso porque livra o investigado do processo, que “impõe custos instantâneos ao pretendido réu. Custos muitas vezes maiores do que a incerta condenação legal. Não são impostos pelo juiz nem pela lei. São custos colaterais. Verdadeiras penas sem julgamentoFalcão, Joaquim. A pena é o processo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0806201007.htm. Acessado no dia 25.09.2017.”.
Ainda, assim, insiste-se em questionar: acordo sem previsão legal? Ocorre que se trata de procedimento! O Ministério Público só está disciplinando o modo de fazer, a forma de se encaminhar/colocar certas causas em juízo. Até este exato momento, não há processo. Como se estivesse a dizer: o acordo de não-persecução penal, quando couber, precede o exercício da ação penal. Não há inércia, mas, sim, o cumprimento da função institucional de modo menos coercitivo, por meio da precedência de resolução extrajudicial da infração cometida.
Na realidade, a possibilidade de acordos não é uma inovação da Resolução nº 181, do CNMP. O Código de Processo Civil/2015 permite estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa, antes do processoCPC, Artigo. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.; e como consiste em norma que consubstancia a valorização e acolhimento da autocomposição no direito processual, por mais que se alegue a especificidade e autonomia do processo penal, em princípio, a ele se aplica, assim como aos outros ramos (v.g. civil e trabalhista), sempre que não houver manifesta incompatibilidade.
Portanto, o acordo de não-persecução penal constitui um promissor avanço do direito processual penal brasileiro. Parece precipitado rejeitá-lo, sem que se reflita melhor sobre o assunto. Caso contrário, ficará como conclusão – ainda que provisória – a afirmação do velho Hegel: Na facilidade com que o espírito se dá por satisfeito, pode-se medir a extensão daquilo que está perdendo.