Dentre os delitos tipificados na Lei 10.826/03, há o do art. 16, que pune, no caput, as condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Mas o art. 16 contém um parágrafo com condutas equiparadas, mas que, na realidade, não têm – ou não precisam ter – direta relação com aquelas das quais derivam. São elas:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente;
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
Dissemos que as condutas tipificadas no parágrafo único não precisam ter relação direta com a figura básica porque o caput cuida exclusivamente de armas, munições e acessórios de uso restrito, ao passo que as demais figuras podem envolver inclusive artefatos de uso permitido.
No caso do inciso IV, o ato de portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado pode perfeitamente recair em armas de uso permitido, o que provoca a modificação da subsunção da conduta, que passa do art. 12 (posse) ou do art. 14 (porte) para o art. 16, tornando-se consideravelmente mais graves as consequências (além da pena maior, o crime é hediondo, como defendemos neste artigo).
A razão de ser da punição mais grave é a completa perda de controle sobre a origem e a movimentação das armas de fogo que têm a identificação suprimida. Esse controle envolve, evidentemente, não só as armas de uso restrito, mas também as de uso permitido, razão por que o tipo abrange ambas as espécies com a mesma pena. Não se trata, portanto, de estabelecer a punição de acordo com o potencial lesivo da arma (essa diferenciação se dá nas formas básicas de punição dos arts. 14 e 16), mas de considerar que a impossibilidade de identificar qualquer arma de fogo fragiliza na mesma medida o sistema de controle. A respeito, destaca-se um trecho do seguinte julgado do STF:
“2. No julgamento do RHC 89.889, da relatoria da ministra Cármem Lúcia, o Plenário desta colenda Corte entendeu que o delito de que trata o inciso IV do parágrafo único do art. 16 do Estatuto do Desarmamento é Política Criminal de valorização do poder-dever do Estado de controlar as armas de fogo que circulam em nosso País. Isso porque a supressão do número, marca, ou qualquer outro sinal identificador do artefato lesivo impede o seu cadastramento e controle. 3. A função social do combate ao delito em foco alcança qualquer tipo de arma de fogo; e não apenas armamento de uso restrito ou proibido. Tanto é assim que o porte de arma de fogo com numeração raspada constitui crime autônomo. Figura penal que, no caso, tem como circunstância elementar o fato de a arma (seja ela de uso restrito ou não) estar com a numeração ou qualquer outro sinal identificador adulterado, raspado ou suprimido.” (HC 99.582/RS, j. 08/09/2009)
Em razão disso, há quem defenda a desclassificação da conduta do art. 16, inc. IV para os arts. 12 ou 14 (conforme se trate de posse ou porte) se a identificação da arma de uso permitido apreendida em poder do agente é recuperada no exame pericial.
Com efeito, as armas que tenham tido o número identificador de alguma forma suprimido podem passar pelo denominado exame metalográfico, cujo propósito é a recuperação de gravações em superfícies metálicas. Se a arma com a qual o agente foi surpreendido passou por este exame e teve seus dados identificadores recuperados, argumenta-se que o propósito da punição mais grave (perda de controle sobre a origem da arma) deixa de existir, o que justificaria a alteração da imputação.
A tese, no entanto, não foi encampada pelo STJ, que negou liminar no HC 457.115/SC argumentando que para a caracterização do crime basta a constatação de supressão da identificação da arma. Eventuais modificações nesse cenário não são capazes de alterar a tipificação penal.
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