O desaforamento vem previsto nos arts. 427 e 428 do Código de Processo Penal e consiste na prática, por instância superior, de um ato que modifica a regra de competência territorial nas hipóteses de Júri. Através do desaforamento, portanto, o réu, por motivos que a lei relaciona, é julgado em foro diverso daquele em que cometeu o crime, deixando de ser observada, assim, a competência pelo lugar da infração mencionada no art. 70 do CPP (competência ratione loci). Desaforar, pois, na precisa lição de Júlio Fabbrini MirabeteProcesso penal, São Paulo: Atlas, 17ª. ed., 2004, p. 502, “é retirar o processo do foro em que está para que o julgamento se processe em outro”.
Admite-se o desaforamento em quatro situações, na exata dicção dos arts. 427 e 428, do CPP, a saber: 1) por interesse da ordem pública; 2) quando pairar dúvida sobre a imparcialidade do Júri; 3) quando houver risco à segurança pessoal do acusado e 4) quando injustificadamente o Júri não se realizar no prazo de seis meses contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.
Como consequência da acolhida do pedido, conforme dispõe a parte final do art. 427 do CPP, tem-se o desaforamento para “outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferencialmente as mais próximas”.
Destaque-se, em primeiro lugar, que esse deslocamento não ofende o princípio do juiz natural nem caracteriza nenhum tipo de formação de tribunal de exceção. Trata-se tão somente de procedimento legal que visa a garantir que o julgamento seja realizado em um ambiente tranquilo, imune a influências externas, para que seja possível a livre manifestação dos jurados; que o julgamento seja imparcial; que a segurança do réu seja observada; ou que o julgamento seja realizado em tempo razoável. Esta vem sendo a orientação adotada pelo STJ HC 206.854/PR, DJe 22/05/2014:
“O desaforamento é uma exceção à regra da fixação da competência em razão do lugar da infração, ratione loci. Tal instituto não fere preceitos constitucionais, já que ele não colide com o princípio do juiz natural, pois só desloca o julgamento de um foro para outro, porém a competência para julgar continua sendo do Tribunal do Júri”.
Recentemente, o STJHC 374.713/RS, DJe 13/06/2017 também estabeleceu que o desaforamento do julgamento em plenário não retira do juiz originário a competência para determinar a execução provisória da pena após a manifestação do órgão de segunda instância mantendo a condenação proferida pelos jurados.
No caso, a defesa argumentava, invocando o art. 668 do CPPArt. 668. A execução, onde não houver juiz especial, incumbirá ao juiz da sentença, ou, se a decisão for do Tribunal do Júri, ao seu presidente. Parágrafo único. Se a decisão for de tribunal superior, nos casos de sua competência originária, caberá ao respectivo presidente prover-lhe a execução., que a mudança do julgamento para outra comarca em razão do desaforamento acarreta não só a competência para julgar como também para decidir sobre a execução.
Segundo o tribunal, no entanto, o dispositivo só pode ser aplicado nos casos de julgamento originário pelo Tribunal do Júri, não nas situações de desaforamento. Por caracterizar exceção à competência racione loci, a regra do desaforamento deve ter interpretação restrita, aplicando-se exclusivamente à sessão de julgamento em plenário. Uma vez encerrada a sessão, esgota-se a competência do juiz designado para presidi-la.
Destacou-se no julgamento que a decisão estabelecendo a competência do juiz originário para a execução provisória da pena não ignora o princípio da perpetuatio iurisdictionis no Tribunal do Júri, mas apenas confere a devida delimitação das situações em que o juiz da comarca destinatária do desaforamento é competente para julgar questões surgidas no curso do feito. No caso, essa competência perdura até que se finde o julgamento popular. Conferir ao desaforamento a qualidade de algo além de um deslocamento excepcional de competência apenas para a realização do julgamento em plenário resultaria, por exemplo, na impossibilidade de reaforamento (a volta do processo ao juízo originário) caso desaparecessem os motivos que levaram ao deslocamento.
No mesmo julgamento, o STJ estabeleceu que o fato de a sentença de primeiro grau ter sido proferida com menção expressa ao aguardo do trânsito em julgado, antes da decisão do STF permitindo a execução provisória da pena, não impede a referida execução. Embora seja possível, com base nas peculiaridades dos casos concretos, que se obste a execução provisória – conferindo efeito suspensivo a recurso especial, por exemplo –, o simples fato de ter constado no dispositivo da sentença a determinação para que se aguardasse o trânsito em julgado não tem nenhum efeito impeditivo porque apenas refletia o entendimento do STF à época em que a sentença foi proferida. Modificado esse entendimento, seria absurdo impedir a incidência dos efeitos da decisão tomada pela Corte superior apenas por uma referência contida na sentença de primeiro grau. Seria nada mais do que a primeira instância obstando a plena eficácia da decisão do STF – um paradoxo jurídico, nas palavras do relator.
HC 374.713/RS
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