- REFLEXOS PENAIS DO DECRETO 9.685, DE 15 DE JANEIRO DE 2019, NO CRIME DO ART. 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO
O texto original do Estatuto do Desarmamento previa que os registros de propriedade expedidos até a data de sua publicação (23 de dezembro de 2003), deveriam ser renovados junto à Polícia Federal no prazo máximo de três anos (§ 3º do art. 5º). Tais registros eram expedidos, antes da nova lei, em geral, por autoridades estaduais. No entanto, o dispositivo sofreu diversas modificações, a última delas por meio da Lei 11.922/2009 (art. 20). Assim, o proprietário de arma de fogo com certificados de registro de propriedade expedido por órgão estadual ou do Distrito Federal até a data da publicação do Estatuto que não optou pela entrega espontânea prevista em seu art. 32, tinha o dever de renová-lo mediante o pertinente registro federal até o dia 31 de dezembro de 2009, desde que cumpridos certos requisitos. Portanto, o prazo já expirou, de modo que aqueles proprietários de armas de fogo que se omitiram em tal dever possuem-nas, desde então, ilegalmente, podendo até mesmo responder criminalmente por tal conduta. O mesmo se diga quanto aos proprietários de armas de uso permitido que não possuíam qualquer registro, visto que o art. 30 do Estatuto também fixou a mesma data para a devida regularização.
Aquele que registrou a arma ou renovou o registro dentro do prazo acima passou a ter uma arma em acordo com as determinações legais.
E se, depois disso, vencendo o prazo de validade do registro, pergunta-se: haverá o crime do art. 12 do Estatuto, caso o proprietário não entregue a arma à Polícia Federal?
Estando vencido o registro, não tendo providenciado o proprietário da arma sua renovação, não haverá o crime do art. 12 do Estatuto e o fato será atípico se a arma for encontrada nas condições descritas no dispositivo legal (posse dentro de casa ou local de trabalho). É que registro houve e os objetivos deste foram cumpridos, não havendo o rebaixamento da segurança pública apenas porque expirada sua validade. Trata-se, assim, de infração administrativa, sem reflexos penais. Esse posicionamento vem sendo, por sinal, adotado pelo STJ (RHC 80.365-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., j. 14/03/2017). Mas nem todos concordam, daí a relavância das observações abaixo.
O que isso tem a ver com o Decreto 9.685/2019? Simples: o citado decreto renovou automaticamente todos os certificados de registro de arma de fogo expedidos antes da data de sua publicação (15 de janeiro de 2019), conforme texto de seu art. 2º: “Os Certificados de Registro de Arma de Fogo expedidos antes da data de publicação deste Decreto ficam automaticamente renovados pelo prazo a que se refere o § 2º do art. 16 do Decreto nº 5.123, de 2004”. Entendam: uma vez que a arma, lá nos primeiros anos de vigência do Estatuto do Desarmamento, tenha sido regularizada por meio do registro, houve a expedição de um certificado, que possui um determinado prazo de validade (já foi de 3 anos, passou para 5 anos e, agora, para 10 anos) e todos foram automaticamente renovados pelo novo decreto.
E aqui vem um ponto realmente importante: entendemos que esse dispositivo não faz distinção entre certificados ainda válidos e os vencidos, pois apenas menciona os certificados “expedidos antes da data de publicação deste Decreto”. Ora, assim pensamos porque nos parece evidente que mesmo os certificados já vencidos foram expedidos antes da data de publicação do decreto.
Portanto, a questão acima levantada – é crime possuir a arma com registro vencido? – perde toda importância na atualidade, pois a renovação automática dos registros retira a tipicidade da conduta – para aqueles que entendiam ser típica –, pois os possuidores de tais armas agora deixam de estar em desacordo com a disposição regulamentar.
Mais uma indagação: essa renovação automática atinge aqueles que, por conta da promulgação do próprio Estatuto do Desarmamento, tinham o dever de regularizar a arma até o dia 31 de dezembro de 2009, mediante o pertinente registro ou sua renovação?
A resposta só pode ser negativa. É que, nesse caso, o prazo foi instituído pela própria Lei 10.826 e, como vimos, já expirou. Não se pode, pela via infralegal, alterar o prazo estabelecido em lei. Portanto, repita-se: uma vez regularizada a arma até 31 de dezembro de 2009, com o registro ou sua renovação, a arma passou a estar em acordo com a determinação legal; vencido depois o registro, não haverá crime, pois todos os certificados foram automaticamente renovados por dez anos, a partir de 15 de janeiro de 2019.
Porém, no caso de registro vencido, com recusa de renovação por falta de atendimento a algum requisito legal, a solução deve ser outra.
Nesse caso, de acordo com o art. 67-B do Decreto 5.123/2004, deverá o proprietário entregar a arma à Polícia Federal – mediante indenização – ou providenciar sua transferência para terceiro, no prazo máximo de sessenta dias. A inobservância dessa obrigação implicará na apreensão da arma pela Polícia Federal ou por órgão público por esta credenciado, sem prejuízo da aplicação das sanções penais cabíveis. Assim, nessa hipótese, mantendo o proprietário a arma em casa ou local de trabalho – nas condições, portanto, do art. 12 do Estatuto do Desarmamento – incorrerá nesse tipo penal. É que o próprio Estado negou a renovação do registro, por falta de requisito legal (ex.: prática de crime, resultado de exame psicológico etc.) e, a partir daí, tem o possuidor a obrigação de se desfazer da arma, quer entregando-a à Polícia, quer a transferindo a terceiro. Mantendo a arma consigo, cometerá crime.
Isso mudou com o Decreto 9.685/2019? Não. Pensamos que o art. 67-B do Decreto 5.123 não foi atingido pela renovação automática dos certificados de registro. Note-se que o possuidor da arma que teve indeferida a renovação do registro perdeu o direito de reiterar futuramente o pedido, simplesmente porque perdeu o direito de possuir aquela arma anteriormente registrada, tanto que tem o dever de entregá-la à Polícia Federal ou de transferi-la, no prazo máximo de sessenta dias. Em suma: o possuidor tentou renovar o registro, não conseguiu e, com isso, perdeu o direito de possuir e de registrar a arma, não podendo ser beneficiado por uma renovação automática.
- REFLEXOS PENAIS DO DECRETO 9.685, DE 15 DE JANEIRO DE 2019, NO CRIME DO ART. 13 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO
A conduta prevista no caput do art. 13 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) é a de deixar de observar as cautelas necessárias para impedir que menor de 18 anos ou que pessoa portadora de deficiência mental se apodere de uma arma de fogo que esteja sob a posse do agente ou que seja de propriedade deste. O núcleo do tipo situa-se na expressão deixar de observar, ou seja, não ter atenção, o que sugere a existência de um dever, de um comportamento esperado que não foi seguido pelo agente.
Mas o que se deixa de observar nesse caso? As cautelas necessárias, expressão que constitui elemento normativo do tipo e que representa o dever de cuidado objetivo.
O tipo ainda prevê uma finalidade para a exigência da cautela, é dizer, o legislador deixa expresso o que quer efetivamente impedir: que menor de 18 anos ou pessoa portadora de deficiência mental se apodere de arma de fogo.
É nesse ponto que devemos discutir uma nova disposição trazida pelo Decreto 9.685/2019.
O Decreto 5.123/2004, com a redação que lhe foi dada pelo decreto citado acima, exige daquele que queira adquirir uma arma de fogo e que possua residência habitada também por criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, a apresentação de uma declaração de que, a sua moradia possui cofre ou local seguro com tranca para armazenamento (art. 12, VIII). Essa exigência não existia até 15 de janeiro de 2019, data da publicação do Decreto 9.685.
O § 10 do mesmo art. 12 do Decreto 5.123 (também incluído pelo Decreto 9.685/2019) por sua vez estatui o seguinte: “A inobservância do disposto no inciso VIII do caput sujeitará o interessado à pena prevista no art. 13 da Lei nº 10.826, de 2003”.
Este último dispositivo deve ser interpretado com muita cautela.
A exigência do inciso VIII do art. 12 do Decreto 5.125 não pode ser considerada a “cautela necessária” prevista no tipo do art. 13 do Estatuto: a cautela seria o ato de providenciar que na moradia haja cofre ou local seguro com tranca para armazenamento da arma, de modo a impedir que menor de 18 anos ou pessoa portadora de deficiência mental dela se apodere. O que o inciso VIII do art. 12 do Decreto exige é apenas a apresentação de uma declaração do interessado de que possui tal cofre ou local seguro em casa.
Assim, como interpretar que “a inobservância do disposto no inciso VIII do caput sujeitará o interessado à pena prevista no art. 13 da Lei nº 10.826, de 2003”?
A inobservância não pode ser simplesmente inobservância da falta de apresentação da declaração, obviamente, porque, nesse caso, não estaria presente um dos requisitos exigidos pelo Decreto 5.123 para que seja autorizada a aquisição da arma. O problema inexistiria.
Tampouco pode ser a falta de apresentação da declaração daquele que tinha o dever de apresentá-la, ocultando o fato de coabitar com menor de 18 anos ou pessoa portadora de deficiência mental. Isso porque a simples apresentação de uma declaração não pode ser, em si, a própria cautela. Esta não pode ser outra coisa senão o fato de se possuir, na casa, o cofre ou o local seguro com tranca para armazenar a arma.
Com isso, “a inobservância do disposto no inciso VIII etc.” não pode ser interpretada no sentido de que a falta de apresentação da declaração quando exigida pelo Decreto configura o crime do art. 13 do Estatuto. Claro, já que a mera apresentação da declaração não pode ser considerada a “cautela necessária” do tipo penal. E não sendo a cautela necessária, afirmar que alguém comete o crime do art. 13 do Estatuto simplesmente porque deixou de apresentar a declaração quando exigida é aceitar que um decreto possa criar novo tipo penal, o que seria inconstitucional, por flagrante violação ao princípio da reserva legal.
Pensamos que a única interpretação possível é outra: o § 10 do art. 12 traz uma presunção de que, caso haja o apoderamento da arma por menor de 18 anos ou pessoa portadora de deficiência mental que resida na casa (o que a doutrina, em geral, exige que ocorra para configuração do crime), a falta de cofre ou de local seguro com tranca para armazenar o objeto trará a presunção de falta das “cautelas necessárias” do tipo do art. 13 do Estatuto do Desarmamento. Essa presunção não poderá ser aplicada aos casos anteriores a 15 de janeiro de 2019, data em que entrou em vigor o Decreto 9.685, que trouxe o citado § 10 ao art. 12 do Decreto 5.123/2004.