1) É incabível a desclassificação do crime de atentado violento ao pudor para quaisquer das contravenções penais dos arts. 61 ou 65 do Decreto-Lei n. 3.688/1941, pois aquele se caracteriza pela prática de atos libidinosos ofensivos à dignidade sexual da vítima, praticados mediante violência ou grave ameaça, com finalidade lasciva, sucedâneo ou não da conjunção carnal, evidenciando-se com o contato físico entre agressor e ofendido.
Quando ainda vigorava, o art. 214 do Código Penal tipificava o atentado violento ao pudor nos seguintes termos: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Atualmente, como se sabe, essa conduta integra o tipo penal do estupro.
O ataque ao pudor mediante violência ou grave ameaça em nada se assemelha às contravenções dos artigos 61 e 65 do Decreto-lei 3.688/41. A primeira, revogada pela Lei 13.718/18, punia a conduta de importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. A segunda, ainda em vigor, pune quem molesta alguém ou perturba sua tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável.
Consideradas essas características inconciliáveis, pode causar certa perplexidade que tenha sido necessário o STJ firmar uma tese de que a desclassificação do crime para alguma das contravenções é impossível. Se, no entanto, observamos os julgados que deram origem à tese, veremos que tratam de crimes imputados mediante violência presumida, sob a vigência do também revogado art. 224 do CP. Em situações nas quais a conduta tivesse sido praticada sem violência ou grava ameaça propriamente ditas, era comum buscar a desclassificação para que determinados atos de cunho sexual fossem considerados meras contravenções. O STJ, como se nota, não acolheu o movimento:
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se consolidando no sentido de que o delito de atentado violento ao pudor, hoje reunido pelo legislador no tipo penal de estupro, engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos, sendo, portanto, incabível a desclassificação para a contravenção penal de molestar alguém ou pertubar-lhe a tranquilidade a conduta de passar a mão e colocar o dedo no ânus da menor e obrigá-la a pegar no pênis de outro menor impúbere” (HC 471.852/SC, j. 26/02/2019).
2) Em razão do princípio da especialidade, é descabida a desclassificação do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal – CP) para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP), uma vez que este é praticado sem violência ou grave ameaça, e aquele traz ínsito ao seu tipo penal a presunção absoluta de violência ou de grave ameaça.
A Lei 13.718/18 inseriu no Código Penal o art. 215-A, que pune, com reclusão de um a cinco anos, a importunação sexual, consistente em “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
Consiste o crime, basicamente, em praticar ação atentatória ao pudor com propósito lascivo ou luxurioso. O tipo exige que o ato libidinoso seja praticado contra alguém, ou seja, pressupõe uma pessoa específica a quem deve se dirigir o ato de autossatisfação.
O preceito secundário do art. 215-A contém subsidiariedade expressa: aplicam-se as penas da importunação sexual se a conduta não caracteriza crime mais grave. Por isso, a falta de anuência da vítima não pode consistir em nenhuma forma de constrangimento, que aqui deve ser compreendido no sentido próprio que lhe confere o tipo do estupro – obrigar alguém à prática de ato de libidinagem –, não no sentido usual, de mal-estar, de situação embaraçosa, ínsita ao próprio tipo do art. 215-A e um de seus fundamentos.
Ocorre que, no âmbito dos crimes cometidos por meio de atos de libidinagem há o estupro de vulnerável, em que pode não haver propriamente um constrangimento a atos sexuais. Diante da prática de atos de libidinagem contra vulnerável sem que se identifiquem o constrangimento e o contato efetivamente sexual (como beijos e toques lascivos sobre a roupa), surgem movimentos para que a tipificação se afaste do art. 217-A e se assente no novo tipo penal, mais adequado, segundo se argumenta, para lidar com situações que não chegam efetivamente ao contato sexual. Embora a situação seja objeto de debate inclusive no âmbito dos tribunais superiores, o STJ tem decidido que a desclassificação não é admissível:
“1. Diante da inovação legislativa, apresentada pela Lei n. 13.718, de 24 de setembro de 2018, foi criada a figura da importunação sexual, prevista no art. 215-A do Código Penal. No entanto, tem prevalecido o entendimento de não ser possível o reenquadramento de condutas como a descrita nestes autos, envolvendo pessoa menor de 14 anos. 2. Ressalvo meu ponto de vista, porém mantenho o entendimento de ambas as Turmas do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da impossibilidade de desclassificação, quando se tratar de vítima menor de 14 anos. 3. Agravo regimental improvido” (AgRg no HC 584.799/GO, j. 23/06/2020).
3) O delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima.
No estupro de vulnerável é punido quem tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com alguém menor de quatorze anos ou portador de enfermidade ou deficiência mental incapaz de discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não tenha condições de oferecer resistência – pouco importando, neste último caso, se a incapacidade foi ou não provocada pelo autor.
Trata-se de crime de execução livre, pois o tipo não vincula a ação criminosa a atos específicos. Embora o tipo do art. 217-A não seja expresso a esse respeito, a conduta de praticar com menor de idade atos libidinosos abrange tanto o ato sexual tendo a vítima um comportamento passivo (permitindo que com ela se pratiquem os atos) ou ativo (praticando os atos de libidinagem no agente), implicando, interpretação diversa, proteção deficiente do Estado. E, segundo tem decidido o STJ, o crime pode se caracterizar na forma consumada por meio das mais diversas situações, e não apenas por relações sexuais propriamente ditas:
“[…] 2. Não há mesmo que se falar em desclassificação da conduta delitiva, isso porque, consoante a jurisprudência desta Corte Superior, “o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que, ao lado desta, caracteriza o crime de estupro, inclui toda ação atentatória contra o pudor praticada com o propósito lascivo, seja sucedâneo da conjunção carnal ou não, evidenciando-se com o contato físico entre o agente e a vítima durante o apontado ato voluptuoso” (AgRg REsp n. 1.154.806/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, DJe 21/3/2012). 3. No caso concreto, consta dos autos que as provas colhidas durante o Inquérito Policial e Instrução Criminal confortam, com a necessária segurança, a conclusão de que o recorrente cometeu o crime de estupro de vulnerável contra A. L. A. S., menor de 11 (onze) anos de idade à época dos fatos, o qual consistiu na prática de atos diversos da conjunção carnal, quais sejam: pegar na genitália, pernas e seios” (AgRg no AREsp 1.627.379/CE, j. 09/06/2020).
“1. O Tribunal de origem havia entendido que a conduta praticada pelo agente – passar a mão na vagina e nas nádegas, por cima da roupa, de criança de 6 (seis) anos de idade – caracterizava mera tentativa de estupro de vulnerável, razão pela qual decidiu pela desclassificação da conduta para o crime do art. 217-A, c/c o art. 14, II, do Código Penal. 2. Contudo, como assentado no provimento agravado, o acórdão destoava da orientação sedimentada nesta Corte Superior, para a qual a conduta imputada ao agravante se coaduna com o crime de estupro de vulnerável consumado, pois na expressão “ato libidinoso” descrita no tipo penal estão contidos todos os atos de natureza sexual, diversos da conjunção carnal, que tenham a finalidade de satisfazer a libido do agente. 3. Prevalece, ainda, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que é “inadmissível que o julgador, de forma manifestamente contrária à lei e utilizando-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, reconheça a forma tentada do delito ou a desclassifique para contravenção penal, em razão da alegada menor gravidade da conduta” (AgRg no AREsp 1067155/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 22/03/2018, DJe 03/04/2018). Precedentes” (AgRg nos EDcl no REsp 1.858.925/MS, j. 19/05/2020).
4) A contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos art. 213 e art. 217-A do CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e vítima.
Na esteira da tese anterior, o STJ já decidiu que o estupro de vulnerável se perfaz pela simples contemplação lasciva. No caso, o agente havia sido surpreendido enquanto contemplava uma criança de dez anos nua:
“O Parquet classificou a conduta do recorrente como ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra vítima de 10 anos de idade. Extrai-se da peça acusatória que as corrés teriam atraído e levado a ofendida até um motel, onde, mediante pagamento, o acusado teria incorrido na contemplação lasciva da menor de idade desnuda. Discute-se se a inocorrência de efetivo contato físico entre o recorrente e a vítima autorizaria a desclassificação do delito ou mesmo a absolvição sumária do acusado.
A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal – CP, sendo irrelavante [sic], para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido.
O delito imputado ao recorrente se encontra em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Cuidando-se de vítima de dez anos de idade, conduzida, ao menos em tese, a motel e obrigada a despir-se diante de adulto que efetuara pagamento para contemplar a menor em sua nudez, parece dispensável a ocorrência de efetivo contato físico para que se tenha por consumado o ato lascivo que configura ofensa à dignidade sexual da menor. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal.
In casu, revelam-se pormenorizadamente descritos, à luz do que exige o art. 41 do Código de Processo Penal – CPP, os fatos que, em tese, configurariam a prática, pelo recorrente, dos elementos do tipo previsto no art. 217-A do CP: prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal com vítima menor de 14 anos. A denúncia descreve de forma clara e individualizada as condutas imputadas ao recorrente e em que extensão elas, em tese, constituem o crime de cuja prática é acusado, autorizando o pleno exercício do direito de defesa e demonstrando a justa causa para a deflagração da ação penal.
Nesse enredo, conclui-se que somente após percuciente incursão fática-probatória seria viável acolher a tese recursal de ausência de indícios de autoria e prova de materialidade do delito imputado ao recorrente. Tal providência, contudo, encontra óbice na natureza célere do rito de habeas corpus, que obsta a dilação probatória, exigindo que a apontada ilegalidade sobressaia nitidamente da prova pré-constituída nos autos, o que não ocorre na espécie.
Assim, não há amparo para a pretendida absolvição sumária ou mesmo o reconhecimento de ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal para apuração do delito. Recurso desprovido” (RHC 70.976/MS, j. 02/08/2016).
5) É possível a configuração do crime de assédio sexual (art. 216-A do CP) na relação entre professor e aluno.
O crime de assédio sexual é tipificado no art. 216-A do CP e consiste em constranger alguém com o intuito de obter vantagem sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou de ascendência (condição de mando) inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. É, em síntese, a insistência importuna de alguém em posição privilegiada, que usa dessa vantagem para obter favores sexuais de um subalterno.
A doutrina discute se é possível o assédio sexual do professor contra o aluno. A controvérsia nasce a partir da interpretação que se pode conferir às expressões “superioridade hierárquica” e “ascendência”, condições elementares do tipo.
Para Guilherme de Souza NucciCódigo Penal comentado, p. 985, ambas são inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, mas a superioridade hierárquica retrata uma relação laboral no âmbito público, enquanto a ascendência espelha a mesma relação, porém no campo privado. Nesse contexto, não configura o crime a mera relação entre docente e aluno, por ausência do vínculo de trabalho entre os dois sujeitos.
Luiz Regis PradoCurso de direito penal brasileiro: parte especial, p. 288 discorda, assim argumentando:
“Superior hierárquico, como elemento normativo do tipo, é condição que decorre de uma relação laboral, tanto no âmbito da Administração Pública como da iniciativa privada, em que determinado agente, por força normativa ou por contrato de trabalho, detém poder sobre outro funcionário ou empregado, no sentido de dar ordens, fiscalizar, delegar, ou avocar atribuições, conceder privilégios (v.g., promoção, gratificação etc.), existindo uma carreira funcional, escalonada em graus.
Na ascendência, elemento normativo do tipo, não se exige uma carreira funcional, mas apenas uma relação de domínio, de influência, de respeito e até mesmo de temor reverencial (v.g., relação professor-aluno em sala de aula)”.
Sob esta ótica, portanto, é plenamente possível que o professor constranja um aluno com o intuito de obter vantagem sexual.
O STJ firmou tese na qual adota a segunda orientação sob o argumento de que não é possível ignorar a ascendência exercida pelo professor, que, devido à sua posição, pode despertar admiração, obediência e temor nos alunos, e, em virtude disso, tem condição de se impor para obter o benefício sexual:
“É patente a aludida “ascendência”, em virtude da “função” desempenhada pelo recorrente – também elemento normativo do tipo -, devido à atribuição que tem o professor de interferir diretamente na avaliação e no desempenho acadêmico do discente, contexto que lhe gera, inclusive, o receio da reprovação. Logo, a “ascendência” constante do tipo penal objeto deste recurso não deve se limitar à idéia de relação empregatícia entre as partes. Interpretação teleológica que se dá ao texto legal” (REsp 1.759.135/SP, j. 13/08/2019).
Para se aprofundar, recomendamos:
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