1) Aquele que adere à determinação do comparsa e contribui para a consumação crime de estupro, ainda que não tenha praticado a conduta descrita no tipo penal, incide nas penas a ele cominadas, nos exatos termos do art. 29 do Código Penal.
É partícipe quem realiza atos que de alguma forma concorrem para o crime, sem ingressar na ação nuclear típica. A participação pode ocorrer por via moral ou material.
A participação moral se dá por instigação ou por induzimento. A instigação ocorre quando o partícipe reforça ideia já existente na mente do autor, estimulando-o à prática delituosa, sem nela tomar parte (pode se dar na cogitação, nos atos preparatórios e até durante a execução). O induzimento consiste em faz nascer no agente o propósito, até então inexistente, de cometer o crime (ocorre na cogitação).
A participação material, por sua vez, ocorre por meio do auxílio ao autor do crime (figura do cúmplice). O partícipe facilita a execução do delito, prestando adequada assistência ao autor principal, sem, contudo, tomar parte na execução da ação nuclear típica. Pode ser prestado durante os atos preparatórios ou executórios. Caso ocorra após a consumação, somente se considera o concurso de pessoas se tiver havido a combinação anterior.
Nada impede a participação no crime de estupro em situações nas quais o agente, mesmo sem praticar nenhum ato de libidinagem contra a vítima, de alguma forma adere à conduta do autor e facilita a prática do crime.
Esta tese tem como precedentes dois julgados. Em um deles, dois indivíduos haviam praticado juntos crimes de roubo e extorsão contra um casal. A certa altura, enquanto um dos assaltantes obrigou uma das vítimas a praticar nele ato libidinoso, o outro se colocou junto da segunda vítima para impedir qualquer reação. O Tribunal de Justiça de Goiás havia reformado sentença de primeira instância que condenara o segundo indivíduo como partícipe do estupro, pois ele “não estava legalmente obrigado a evitar o cometimento do fato. Não estava legalmente obrigado a confrontar o outro para defender a mulher, com risco da própria vida”. O STJ, acertadamente, reformou a decisão para restabelecer a condenação de primeira instância:
“Com efeito, no caso em tela, verifica-se que o recorrido G A dos S, apesar de não ter presenciado o ato, contribuiu e facilitou a conduta delituosa do comparsa, não havendo dúvidas quanto à sua participação no delito de estupro.
O Código Penal, ao tratar do concurso de agentes, adota, como regra, a teoria monista, segundo a qual, presentes a pluralidade de agentes e a convergência de vontades voltada à prática da mesma infração penal, todos aqueles que contribuem para o delito incidem nas penas a ele cominadas, na medida da sua culpabilidade.
Nos termos do art. 29 do Código Penal, a participação ocorre quando o agente, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para sua realização.
Esta Corte Superior de Justiça, ao interpretar o referido artigo, entende que é parte passiva legítima na ação quem, de qualquer modo, concorre para o crime, ainda que não tenha praticado a conduta prevista no núcleo do tipo penal.
[…]
No caso, o ora recorrido, G A dos S, no momento em que aderiu à determinação do comparsa, saindo do veículo com a vítima F S de C para vigiá-lo e impedir qualquer reação por parte deste, facilitou e assegurou a consumação do delito, concorrendo para a conduta típica, nos exatos termos do art. 29 do Código Penal.
Logo, é forçoso reconhecer a procedência da sentença, ao concluir que o ora recorrido participou do crime de estupro contra a vítima, pois permitiu, de fato, que com esta fosse praticado atos libidinosos” (REsp 1.799.010/GO, j. 23/04/2019).
No outro caso, dois indivíduos abordaram uma jovem na rua e, sob ameaça de uma faça, levaram-na à casa de um terceiro, que lhes franqueou a entrada e assistiu ao estupro. O agente foi condenado em primeira instância, mas o Tribunal de Justiça de Goiás desclassificou a conduta para omissão de socorro, tese não acolhida pelo STJ:
“No caso, o acusado, ao franquear a entrada e permanência dos agentes em sua residência para a prática dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, aos quais permaneceu assistindo da porta do quarto, facilitou e assegurou a consumação dos delitos, concorrendo para a conduta típica, aplicando-lhe a norma de extensão do art. 29 do CP.
Não há falar, portanto, em crime de omissão de socorro, mas em auxílio material relevante para a prática do delito, configurando-se a participação por cumplicidade.
Assim, deve ser reformado o acórdão que desclassificou a conduta para o crime de omissão de socorro, a fim de que o Tribunal de origem examine as demais teses arguidas pela defesa no recurso de apelação” (REsp 1.175.623/GO, j. 01/12/2015).
2) Nas hipóteses em que há imprecisão acerca do número exato de eventos abusivos à dignidade sexual da vítima, praticados em um longo período de tempo, é adequado o aumento de pena pela continuidade delitiva (art. 71 do CP) em patamar superior ao mínimo legal.
Há continuidade delitiva quando alguém, mediante pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie que guardam entre si um elo de continuidade, em especial as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução (art. 71 do CP). O instituto é baseado em razões de política criminal. O juiz, em vez de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em continuidade, considera, por ficção jurídica, somente para aplicação da pena, a prática de um só crime pelo agente, que deve ter a sua reprimenda majorada (o juiz escolhe qualquer das penas, se idênticas, ou a maior delas, se distintas, e a aumenta de 1/6 a 2/3).
Em muitos casos, crimes sexuais são cometidos reiteradamente, às vezes por anos, sem que seja possível apurar com precisão quantas condutas foram cometidas. Nessas situações, o STJ admite o aumento pela continuidade em fração superior a 1/6:
“5. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido que, nas hipóteses em que há imprecisão acerca do número exato de eventos delituosos, esta Corte tem considerado adequada a fixação da fração de aumento, referente à continuidade delitiva, em patamar superior ao mínimo legal, com base na longa duração dos sucessivos eventos delituosos (STJ, AgRg no AREsp n. 455.218/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 05/02/2015)” (AgRg nos EDcl no AgRg no AREsp 1.629.001/SP, j. 19/05/2020).
3) Nos crimes de estupro ou de atentado violento ao pudor praticados com violência presumida, não incide a regra da continuidade delitiva específica (art. 71, parágrafo único, do CP), que condiciona a sua incidência às situações de emprego de violência real.
Antes da entrada em vigor da Lei 12.015/09, o art. 224 do Código Penal tratava da presunção de violência, aplicável se a vítima não fosse maior de quatorze anos, fosse alienada ou débil mental ou não pudesse, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Neste caso, crimes como estupro e atentado violento ao pudor se caracterizavam mesmo que a conduta não envolvesse violência real.
Ocorre que, no âmbito da continuidade delitiva, há o que se denomina “crime continuado específico”, assim disciplinado no art. 71, parágrafo único, do Código Penal: “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código” (grifamos).
A principal característica da continuidade delitiva específica é exigir (ao lado dos requisitos do crime continuado genérico) que os crimes sejam dolosos, com vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça. O STJ firmou a tese de que a violência presumida de que tratava o art. 224 não atrai a regra da continuidade específica. Neste caso, aplicam-se as disposições do caput do art. 71:
“- O crime continuado é benefício penal, modalidade de concurso de crimes, que, por ficção legal, consagra unidade incindível entre os crimes que o formam, para fins específicos de aplicação da pena. Para a sua aplicação, o art. 71, caput, do Código Penal exige, concomitantemente, três requisitos objetivos: I) pluralidade de condutas; II) pluralidade de crimes da mesma espécie; e III) condições semelhantes de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. – A continuidade delitiva específica, descrita no art. 71, parágrafo único, do Código Penal, além daqueles exigidos para a aplicação do benefício penal da continuidade delitiva simples, exige que os crimes praticados: I) sejam dolosos; II) realizados contra vítimas diferentes; e III) cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.
– No caso em tela, os atos libidinosos praticados contra as vítimas vulneráveis foram desprovidos de qualquer violência real, contando apenas com a presunção absoluta e legal de violência do próprio tipo delitivo. – ‘A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real […]’ (HC 232.709/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 09/11/2016)” (HC 483.468/GO, j. 14/02/2019).
4) A orientação da Súmula n. 593/STJ não importa na retroatividade de lei penal mais gravosa (novatio legis in pejus) e apresenta adequada interpretação jurisprudencial das modificações introduzidas pela Lei n. 12.015/2009.
Desde a entrada em vigor do art. 217-A do Código Penal, o STJ julgou incontáveis casos nos quais se discutia a necessidade de apurar concretamente a capacidade de consentimento da vítima no estupro de vulnerável. A Terceira Seção do tribunal firmou o entendimento no sentido de afastar pretensões para essa apuração concreta, como se extrai da súmula nº 593, segundo a qual:
“O crime de estupro de vulnerável configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”
A súmula não pode ser considerada novatio legis in pejus, pois tão somente consolida a orientação que o tribunal vinha adotando a respeito do crime, razão pela qual deve ser aplicada para todos os fatos ocorridos a partir da entrada em vigor da Lei 12.015/09:
“2. O enunciado da Súmula n.º 593/STJ não constitui novatio legis in pejus, mas apenas apresenta a adequada interpretação das modificações introduzidas pela Lei n.º 12.015/2009. Portanto, um vez que a referida Lei estava em vigor na data do delito ora apurado, não há hipótese de violação à irretroatividade de lei penal mais gravosa. 3. A hipótese em apreço amolda-se com precisão ao disposto na Súmula n.º 593/STJ, não sendo possível afastar a tipicidade penal da conduta do Agravante com fundamento no eventual consentimento da vítima para a prática do ato ou na existência de prévia relação amorosa” (AgRg no REsp 1.765.591/ES, j. 23/04/2019).
5) A prática de conjunção carnal ou de atos libidinosos diversos contra vítima imobilizada configura o crime de estupro de vulnerável do art. 217-A, § 1º, do CP, ante a impossibilidade de oferecer resistência ao emprego de violência sexual.
O conceito de vulnerável que caracteriza o tipo do art. 217-A do CP não se limita à idade da vítima (menor de quatorze anos), abrangendo também a pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental incapaz de discernimento para a prática do ato, e ainda a pessoa que, por qualquer outra causa, não tem condições de oferecer resistência.
A incapacidade de resistência pode decorrer de várias situações, como a da pessoa que, embora não padeça de nenhuma anomalia mental, embriaga-se até a inconsciência e, inerte, é submetida ao ato sexual sem que possa resistir; ou da pessoa que é induzida, por meio de drogas, à inconsciência por alguém que tem o propósito de com ela manter relação sexual não consentida; ou mesmo da pessoa que é completamente imobilizada pelo criminoso, sem que haja forma de se opor ao ato, o que acaba por dispensar o emprego de efetiva violência para consumar a relação.
O último exemplo citado pode gerar certa controvérsia. Se a vítima está imobilizada, mas consciente, por que não tipificar a conduta como estupro (art. 213)? Porque o crime de estupro pressupõe que a vítima possa oferecer resistência física à investida do criminoso. Se a imobilidade a impede de fazê-lo, há estupro de vulnerável:
“1. Verifique-se que, apesar de a reprovação da violência não sofrer alteração deontológica significativa – ambos sendo igualmente reprováveis e abjetos, a vítima sem potencial motor ou a vítima com relativo potencial motor -, é certo que, quando se encontra completamente imobilizada, ela está, de fato e de direito, incapacitada de oferecer resistência, completamente vulnerável, à revelia da sorte escolhida por seu agressor unilateralmente. 2. Se completamente inerte e incapaz de usar seu potencial motor (oferecer resistência) contra a violência sexual, haverá crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Se ainda lhe restar capacidade de discernir sobre a ilicitude da conduta, possibilidade de ofertar alguma resistência e não houver elementos biológicos incapacitantes, haverá o crime de estupro do art. 213 do CP” (REsp 1.706.266/MT, j. 18/10/2018).
6) O avançado estado de embriaguez da vítima, que lhe retire a capacidade de oferecer resistência, é circunstância apta a revelar sua vulnerabilidade e, assim, configurar a prática do crime de estupro previsto no § 1º do art. 217-A do Código Penal.
Se alguém está sob estado de embriaguez que impeça a capacidade de resistência, há crime de estupro de vulnerável. Pouco importa se o estado de vulnerabilidade foi provocado pela vítima em razão da ingestão exagerada de álcool ou se foi provocado pelo agente já com a intenção de cometer o crime. Se a pessoa com quem se pratica o ato não está apta para consentir, há crime:
“In casu, o eg. Tribunal de origem consignou que a vítima estava em estágio avançado de embriaguez, inclusive, no momento do suposto crime, estava inconsciente, portanto, era incapaz de oferecer resistência, caracterizando, assim, a situação de vulnerabilidade. Ressalte-se que o ora paciente foi justamente denunciado pela prática, em tese, do art. 217-A, § 1º, do Código Penal, o que enseja uma ação penal pública incondicionada” (RHC 72.963/MT, j. 13/12/2016).
7) Com o advento da Lei n. 12.015/2009, o crime de corrupção sexual de maiores de 14 e menores de 18 anos, previsto na redação anterior do art. 218 do CP, deixou de ser tipificado, ensejando abolitio criminis.
Em sua redação original, o art. 218 do Código Penal punia as condutas de corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo. Atualmente, sob a vigência da Lei 12.015/09, o dispositivo tipifica a conduta de induzir alguém menor de quatorze anos a satisfazer a lascívia de outrem, ou seja, a praticar atos contemplativos, como, por exemplo, vestir-se com determinada fantasia para satisfazer a luxúria de alguém, ou despir-se com sensualidade (com a orientação ultimamente adotada pelo STJ, que admite o estupro de vulnerável inclusive em atos de contemplação lasciva, a indução de um menor de quatorze anos a se despir para um terceiro pode acarretar a punição do agente como partícipe do crime mais grave).
Além disso, o art. 218-A tipifica a conduta de praticar, na presença de alguém menor de quatorze anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem.
Como se pode notar, nenhum dos dispositivos menciona o menor entre quatorze e dezoito anos, que pode ser sujeito passivo no crime do art. 218-B. Este dispositivo, no entanto, pressupõe que o menor de dezoito anos esteja de alguma forma ligado à prostituição ou a outra forma de exploração sexual, situação de gravidade muito maior do que a corrupção de menores. Assim, condutas cometidas sob a redação primitiva do art. 218 não podem mais sofrer punição devido à abolitio criminis:
“Segundo jurisprudência desta Corte Superior, a corrupção sexual de maiores de 14 (quatorze) e menores de 18 (dezoito) anos deixou de ser tipificada no Código Penal, ensejando abolitio criminis (precedentes)” (RHC 80.481/PR, j. 04/04/2017).
Para se aprofundar, recomendamos:
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