1) O roubo praticado contra vítimas diferentes em um único contexto configura o concurso formal e não crime único, ante a pluralidade de bens jurídicos ofendidos.
Age em concurso formal o sujeito que, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não (art. 70 do CP). São, portanto, requisitos do concurso formal de delitos a unicidade da conduta e a pluralidade de crimes.
Embora se exija conduta única para a configuração desta espécie de concurso, nada impede que esta mesma conduta seja fracionada em diversos atos, no que se denomina ação única desdobrada. Ex.: João ingressa em ônibus coletivo e subtrai, mediante grave ameaça, os pertences pessoais dos passageiros. A conduta permanece única, praticada mediante diversos atos, caracterizando o concurso formal de delitos.
É esta a origem da tese nº 1, pois há quem sustente que a subtração contra várias pessoas cometidas durante a mesma ação na qual o agente exerce a violência ou a grave ameaça deve ser tratada como crime único. Tem-se decidido, no entanto, que, havendo lesão a patrimônios distintos, há de incidir a regra do concurso formal de delitos:
“Caracteriza-se o concurso formal de crimes quando praticado o roubo, mediante uma só ação, contra vítimas distintas, pois atingidos patrimônios diversos. Precedentes.” (HC 459.546/SP, j. 13/12/2018)
Mas qual espécie de concurso formal se caracteriza nesta situação?
Sabemos que o concurso formal pode ser classificado como próprio (perfeito ou normal) ou impróprio (imperfeito ou anormal). No primeiro, apesar de provocar dois ou mais resultados, o agente não age com desígnios autônomos, isto é, não tem intenção independente em relação a cada crime, ao passo que o segundo se caracteriza pela existência de desígnios autônomos. Se o concurso formal é próprio, aplica-se a pena de um dos crimes aumentada de um sexto à metade; se é impróprio, aplica-se o cúmulo material, em que as penas são somadas.
O STJ tem decisões tanto no sentido da modalidade própria (a maioria – cf. HC 364.754/SP – Quinta Turma – Dje 10/10/2016; HC 311.722/SP – Quinta Turma – Dje 13/06/2016) quanto da imprópria (cf. HC 179.676/SP – Sexta Turma – Dje 19/10/2015).
2) A distinção entre o concurso formal próprio e o impróprio relaciona-se com o elemento subjetivo do agente, ou seja, a existência ou não de desígnios autônomos.
Vimos que a classificação do concurso formal em próprio ou impróprio depende da forma como atua o agente em relação aos resultados decorrentes de sua conduta única. Se há apenas um desígnio, o concurso formal é próprio; se há desígnios autônomos, é impróprio.
A tese nº 2 foi firmada porque são inúmeros os recursos e habeas corpus por meio dos quais o tribunal é provocado a decidir sobre a existência de uma ou outra espécie de concurso formal de acordo com as circunstâncias do caso concreto levado a julgamento. À primeira vista, pode parecer redundante simplesmente afirmar que é a existência de desígnios autônomos que marca a incidência de uma ou outra regra de aplicação da pena decorrente do concurso. Isto, afinal, está expresso no art. 70 do Código Penal.
Ocorre que a expressão desígnios autônomos normalmente não é interpretada como sinônimo de crimes dolosos, ou seja, na prática, o cometimento de mais de um crime doloso por meio de ação única não é encarado como concurso formal impróprio. O fato de ter cometido vários crimes dolosos não significa que o agente tenha atuado com desígnios autônomos em relação a cada um deles. Exemplos desta conclusão já foram mencionados nos comentários à tese nº 1.
Isto é contraditório, pois, se há diversos crimes dolosos, não é lógico afirmar que a conduta é movida por apenas um desígnio. Como ensina Cleber Masson, desígnio autônomo “é o propósito de produzir, com uma única conduta, mais de um crime. É fácil concluir, portanto, que o concurso formal perfeito ou próprio ocorre entre crimes culposos, ou então entre um crime doloso e um crime culposo” (Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 760)
Mas a matéria é complexa. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, o legislador brasileiro construiu “uma fórmula de difícil compreensão e explicação, como informa a maioria da doutrina (Basileu Garcia, entre outros). Com efeito, se os desígnios são autônomos, não existe unidade de ação, e, consequentemente, um concurso formal.
(…)
A definição de dolo impede considerar ‘desígnios autônomos’ a pluralidade de resultados, ou obriga à consideração de todos os concursos de tipos dolosos da primeira hipótese do art. 70, o que seria absurdo, porque a regra do concurso formal simples ficaria reduzida às hipóteses de concurso entre tipos doloso e culposo. Historicamente, não pairam dúvidas de que o alvo do legislador foi alcançar os casos de pluralidade de resultados morte no homicídio doloso, ou seja, no chamado ‘concurso formal homogêneo’, que sempre constitui uma hipótese de pluralidade de resultados, mas a disposição legal é uma das mais obscuras do código” (Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. Vol. 1. 8. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 731).
Em suma, o que se pode dizer a respeito da interpretação da expressão desígnios autônomos na prática é que se trata de crimes decorrentes de planos delituosos independentes. É com base nisto que o STJ decide, por exemplo, que há concurso formal próprio entre algumas espécies de crimes patrimoniais e a corrupção de menores tipificada no art. 244-B da Lei 8.069/90: tanto o crime patrimonial quanto o ato de corromper o menor decorrem, no geral, de apenas um plano criminoso:
“É de se observar que, na espécie, para a condenação do delito de corrupção de menores, foi corretamente utilizado o entendimento firmado por esta Corte Superior de Justiça, no sentido de que o crime tipificado no art. 244-B da Lei n. 8.069/90 é formal, ou seja, para a sua caracterização não é necessária a prova da efetiva e posterior corrupção do adolescente, bastando a comprovação da participação do inimputável em prática delituosa na companhia de maior de 18 anos.
Assim, partindo-se dessa premissa, revela-se imprescindível para a aplicação do concurso formal impróprio, a indicação fundamentada de elementos de prova que apontam para a preexistência de intenção do agente em corromper o adolescente na associação para a empreitada criminosa.
Portanto, apenas quando efetivamente demonstrada a existência de desígnios autônomos por parte do agente que pratica o crime corrupção de menores será a hipótese de incidência do concurso formal impróprio, devendo as penas dos dois delitos serem aplicadas cumulativamente (segunda parte do art. 70 do Código Penal).” (HC 375.108/RJ, j. 28/03/2017)
Mas ainda assim a contradição não se resolve completamente, pois há casos em que se pode identificar apenas um plano criminoso e, não obstante, as condutas são imputadas em concurso formal impróprio, como normalmente ocorre em latrocínios com pluralidade de vítimas e de patrimônios atingidos.
3) É possível o concurso formal entre o crime do art. 2º da Lei n. 8.176/91 (que tutela o patrimônio da União, proibindo a usurpação de suas matérias-primas), e o crime do art. 55 da Lei n. 9.605/98 (que protege o meio ambiente, proibindo a extração de recursos minerais), não havendo conflito aparente de normas já que protegem bens jurídicos distintos.
A Lei 8.176/91 define os crimes contra a ordem econômica e, no art. 2º, tipifica como crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.
Já a Lei 9.605/98 trata dos crimes contra o meio ambiente e, no art. 55, pune a conduta de executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida.
É possível que, no mesmo contexto, alguém execute pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais ilegalmente e, em razão disso, produza bens ou explore matéria-prima pertencentes à União, o que obviamente também se dá à margem da lei. Neste caso, há quem sustente a aplicação das regras do concurso aparente de normas alegando que ambos os tipos penais tutelam o mesmo bem jurídico e que o crime do art. 55 da Lei 9.605/98 deve absorver a outra infração penal.
Trata-se, no entanto, de crimes cuja objetividade jurídica não se confunde, pois, enquanto o art. 2º da Lei 8.176/91 tutela expressamente o patrimônio da União (e, por consequência, a ordem econômica), o art. 55 da Lei 9.605/98 volta sua proteção ao meio ambiente. No primeiro caso, a punição considera os prejuízos econômicos que a exploração ilegal de bens e matérias-primas pertencentes à União pode provocar, ao passo que, no segundo, é considerada a potencial deterioração ambiental de pesquisas, lavras e extrações ilegais de recursos naturais. Por isso, o STJ aplica as regras do concurso formal quando ambas as infrações são cometidas por meio da mesma conduta:
“A jurisprudência desta eg. Corte Superior pacificou-se no sentido de que o art. 2º da Lei n. 8.176/91 tutela a ordem econômica, enquanto o art. 55 da Lei n. 9.605/98, tutela o meio ambiente, dessa forma, não há que se falar em conflito aparente de normas por tutelarem bens jurídicos distintos, existindo concurso formal.” (AgRg no REsp 1.678.419/SE, j. 20/09/2018)
4) O aumento decorrente do concurso formal deve se dar de acordo com o número de infrações.
Na aplicação da pena em decorrência do concurso formal perfeito incide o sistema da exasperação: o juiz aplica uma só das penas, se idênticas, ou a maior, se diferentes, aumentada de um sexto até a metade.
O parâmetro para a exasperação é o número de infrações penais: quanto mais crimes o agente houver cometido, mais o aumento deve se aproximar da metade:
“Em relação à fração adotada para aumentar a pena em razão do reconhecimento do concurso formal, nos termos da jurisprudência deste Tribunal Superior, esse aumento tem como parâmetro o número de delitos perpetrados, no intervalo legal entre as frações de 1/6 e 1/2. No presente caso, tratando-se de sete infrações, a escolha da fração de 1/2 foi correta, não havendo ilegalidade a ser sanada.” (HC 475.974/SP, j. 12/02/2019)
É o mesmo critério utilizado na continuidade delitiva.
5) A apreensão de mais de uma arma de fogo, acessório ou munição, em um mesmo contexto fático, não caracteriza concurso formal ou material de crimes, mas delito único.
São comuns as situações em que um indivíduo é surpreendido possuindo ou portando simultaneamente diversas armas de fogo. Tais situações podem se subsumir a diversos tipos penais da Lei 10.826/03, conforme a qualidade das armas: a) se de uso permitido – arts. 12 (posse) ou 14 (porte); b) se de uso restrito – art. 16, caput (posse ou porte); c) com numeração, marca ou outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado – art. 16, parágrafo único, inc. IV (posse ou porte).
Nesses casos em que diversas armas são apreendidas em poder de alguém, há quem impute a prática de crimes em concurso formal, ainda que a conduta se subsuma a apenas um tipo penal. Assim, por exemplo, se alguém é surpreendido portando três revólveres calibre 38 com numeração intacta, será incurso por três vezes no art. 14 da Lei 10.826/03, conforme as disposições do art. 70 do Código Penal, que disciplina o concurso formal de delitos.
O STJ, no entanto, firmou a tese de que a apreensão de diversas armas no mesmo contexto fático caracteriza crime único, não concurso de crimes:
“A jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido da existência de um delito único quando apreendidas mais de uma arma, munição, acessório ou explosivo em posse do mesmo agente, dentro do mesmo contexto fático, não havendo que se falar em concurso material ou formal entre as condutas, pois se vislumbra uma só lesão de um mesmo bem tutelado (Precedentes).” (HC 362.157/RJ, j. 18/05/2017)
Mas esta solução não se aplica nas situações em que a posse ou o porte se subsume a tipos diversos devido à qualidade das armas. Portanto, alguém que porte uma arma de uso permitido e outra de uso restrito deve responder por ambos os delitos em concurso:
“’A prática, em um mesmo contexto fático, dos delitos tipificados nos artigos 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003, configuram diferentes crimes porque descrevem ações distintas, com lesões à bens jurídicos diversos, devendo ser somados em concurso formal’ (AgRg no REsp 1.588.298/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 03/05/2016, DJe 12/05/2016).” (AgRg no AREsp 1.258.199/MS, j. 14/08/2018)
6) O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.
A suspensão condicional do processo é cabível nas situações em que a pena cominada ao crime não é superior a um ano.
Nos casos em que infrações penais são cometidas em concurso, o cabimento da suspensão condicional do processo deve ter em conta o número de infrações cometidas. Se, por exemplo, o agente comete dois furtos simples em concurso formal, não faz jus à suspensão, pois a incidência da fração de aumento, mínima que seja, eleva a pena do furto para mais de um ano. Há quem sustente que o cabimento do benefício deve ser analisado sobre cada infração penal, não sobre o conjunto, mas essa tese não foi acolhida pelo STJ, que editou a respeito a súmula 243 e a vem reiterando:
“3. Considerando a pena mínima prevista para o tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que corresponde a 6 meses de detenção, a qual deve ser somada àquela prevista no preceito secundário do tipo penal do art. 331 do CP, que também foi estabelecida em 6 meses de detenção, chega-se a reprimenda superior a 1 ano, por se tratem de 4 crimes de desacato em concurso material, o que afasta a possibilidade de oferta da vindicada proposta de suspensão condicional do processo. 4. Mesmo que o Magistrado processante venha a reconhecer a continuidade delitiva entre os delitos de desacato, a somatória das penas ultrapassaria o patamar máximo previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/1995. Nos termos do entendimento consolidado na Súmula 243/STJ, ‘o benefício da suspensão condicional do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja no somatório, seja pela incidência da majorante ultrapassar o limite de 1 (um) ano’” (RHC 89.197/SC, DJe 25/10/2017).
7) No concurso de crimes, o cálculo da prescrição da pretensão punitiva é feito considerando cada crime isoladamente, não se computando o acréscimo decorrente do concurso formal, material ou da continuidade delitiva.
De acordo com o que dispõe o art. 119 do Código Penal, no caso de concurso de crimes a prescrição incide sobre cada um, isoladamente. Isto quer dizer que, num concurso material entre dois furtos com pena de quatro anos cada um, a prescrição não será calculada sobre oito anos, mas sobre quatro, considerando separadamente cada um dos delitos. Dá-se o mesmo no concurso formal impróprio, assim como no concurso formal próprio e na continuidade delitiva, nos quais incide o sistema da exasperação: o prazo prescricional não é calculado com base na pena aumentada, mas em cada crime isolado.
A respeito especificamente do crime continuado, o STF editou a súmula nº 497: “Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação”. À época da edição da súmula (1969), muito anterior à redação atual do art. 119 do Código Penal, o STF decidia reiteradamente (não sem acalorados debates, como se extrai do julgamento proferido no RHC 43.740, DJ 15/06/1967) que, ao inserir na lei a possibilidade de continuidade delitiva, o legislador pretendera beneficiar o autor de condutas que, por suas características, haviam de ser consideradas como se fossem apenas uma ação delituosa. Se o intuito do legislador fora beneficiar o agente no momento da aplicação da pena, seria ilógico, para calcular a prescrição, fazer incidir a fração de aumento em prejuízo de quem se pretendia beneficiar.
8) No caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de competência e transação penal será o resultado da soma ou da exasperação das penas máximas cominadas ao delito.
Consiste a transação penal na composição entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso, ao qual são propostas medidas que equivalem a penas restritivas de direitos ou à multa. É cabível se à infração penal for cominada pena não superior a dois anos.
Semelhantemente ao que ocorre na suspensão condicional do processo, o concurso de crimes pode impedir a transação penal se, somadas as penas máximas ou incidentes as frações decorrentes da exasperação sobre a pena máxima, o resultado ultrapassar dois anos. Desta forma, se o agente comete resistência e desacato, não poderá se beneficiar da transação penal tanto no concurso material quanto no formal, pois, no primeiro, a soma das penas eleva o máximo a quatro anos e, no segundo, a exasperação pode fazer a pena chegar a três anos.
Além do óbice à transação, uma vez ultrapassado o limite de dois anos que caracteriza a menor potencialidade ofensiva que atrai o julgamento pelo Juizado Especial Criminal, a competência deve recair no juízo comum:
“I – Na linha da jurisprudência desta Corte de Justiça, tratando-se de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação da competência do Juizado Especial Criminal será o resultado da soma, em concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas ao delitos, caso em que, ultrapassado o patamar de 2 (dois) anos, afasta-se a competência do Juizado Especial. Precedentes.
II – Na espécie, verifica-se que a recorrente foi acusada de praticar os crimes descritos no art. 138, caput (duas vezes) c/c o art. 141, III, no art. 139 (vinte e cinco vezes) c/c art 141, III, na forma do art. 62 e no art. 140 (seis vezes), c/c o art 141, III, na forma do art. 69 c/c art. 29, caput, todos do Código Penal. As penas de tais delitos, somadas, ultrapassam o limite de 2 (dois) anos, o que afasta a competência dos Juizados Especiais.” (RHC 102.381/BA, j. 09/10/2018)
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